Opinião
30 abril 2024

Repartir

Tempo de leitura: 4 min
Repartir é o gesto central de Jesus na Eucaristia, e é a maneira de viver com que os seus discípulos tornam Jesus presente.
P. Fernando Domingues
Missionário Comboniano
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(© 123RF)

 

Repartir: podemos bem dizer que este verbo estava bem no centro de como Jesus via a sua própria missão. O gesto de Jesus que salta logo à memória é o que aprendemos a chamar “multiplicação dos pães”. O evangelista Marcos reconhece a grande importância deste gesto narrando-o duas vezes, para sublinhar elementos diferentes que ajudam a compreendê-lo melhor.

Na primeira narração (Mc 6,3-44), Marcos apresenta a multiplicação dos pães como um “banquete de vida”, em total contraste com o “banquete de morte” que acaba de lembrar (Mc 6, 21-29), o banquete de Herodes, que com o seu grupo de poderosos e ricos só desejam encher a barriga e divertir-se a qualquer preço, é o banquete que leva à morte de João Baptista, o profeta da verdade e da justiça. Em contraste, Marcos apresenta o banquete da vida: o pão repartido de Jesus. Aqui a história não começa muito bem: perante a fome da multidão, os discípulos começam por dizer «manda-os embora, para que procurem alimento, nós não temos dinheiro que chegue, cada um que se arranje…» Jesus sabe que essa lógica pertence ao “banquete de Herodes”, e oferece a sua alternativa: haverá certamente alguma coisa que temos e que se possa partilhar. E havia: cinco pães e dois peixes. É pouco, mas colocado nas mãos de Jesus recebe a bênção de Deus e pode ser repartido para saciar a todos. Notemos que os doze cestos de pão que se recolhem ao fim não estão cheios de pães inteiros, mas de pedaços, é pão pronto para continuar a ser distribuído. O número doze (cestos) aponta para o novo povo de Deus fundado sobre os doze apóstolos, que precisará de continuar a alimentar-se com o pão de Jesus, a Eucaristia.

Pouco mais adiante (Mc 8,1-9), Marcos conta de novo a história: muda o lugar, que agora é terra onde moravam os pagãos; os pães que conseguem arranjar são sete, e já não há peixe; os que comem são cerca de quatro mil, e os cestos de pedaços que sobram são sete.

Quando Marcos escreve, muitos anos mais tarde (nas comunidades que viviam em Roma), já os que «comiam à mesa de Jesus» (eucaristia) eram, na sua maioria, gente vinda de outros povos que não o antigo povo de Israel; o número quatro mil que comem indicava os pagãos. E na celebração do «primeiro dia da semana» repartia-se só pão e partilhava-se o vinho, não se usava peixe, e por isso o peixe agora “desaparece” da história de Jesus. De novo, o que sobra são pedaços: o movimento de “repartir e distribuir” o pão de Jesus é para continuar. E o número sete, dos cestos no final, indica fartura, plenitude: quando os discípulos de Jesus aprendem a partilhar, na eucaristia e na vida, haverá sempre abundância para saciar a todos os que precisam.

Não admira que, na última Ceia, Jesus tenha escolhido esse mesmo gesto de repartir o pão como o sinal central da sua presença pessoal que ia continuar com os discípulos, depois da sua morte e ressurreição.

Os Actos dos Apóstolos dizem-nos que os primeiros grupos de discípulos, a seguir à morte e ressurreição de Jesus, costumavam reunir-se sempre no «primeiro dia da semana» para «escutar o ensinamento dos apóstolos e repartir o pão». Repartir, partir o pouco que temos para que possa ser partilhado é o gesto central de Jesus na Eucaristia, e é a maneira de viver com que os seus discípulos tornam Jesus presente onde quer que rezam, vivem e trabalham. 

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