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04 setembro 2019

Uma aventura no «bote dos órfãos», no Mediterrâneo

Tempo de leitura: 4 min
Patrick, de 5 anos, fugiu de África num bote, o «bote dos órfãos», porque ninguém tinha pai: uns eram filhos da violência sexual sofrida pela mãe, outros de casamentos forçados, outros ainda simplesmente órfãos de algumas guerras, como ele.
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No verão, acontece um episódio curioso no mar Mediterrâneo: muitas vezes alguns peixes-voadores (flying gurnard ou Dactylopterus volitans) são atingidos por uma rajada de vento e acabam por engano dentro dos barcos que cruzam a rota do seu cardume.

E foi exatamente isso que permitiu a Patrick, de 5 anos, realizar o segundo dos dois sonhos com que havia partido da Gâmbia (África): ver um peixe pela primeira vez, um peixe de verdade. Ele nunca tinha visto um na sua vida.

A história de Patrick e do peixe-voador não deixou ninguém indiferente no navio Mare Jonio, embarcação da organização não-governamental (ONG) italiana Mediterranea Saving Humans, que regatou o menino e mais 63 migrantes, crianças, mulheres grávidas e idosos doentes.

Assim que chegou a bordo, o menino continuava a repetir aos socorristas a sua intenção de ver um peixe: Le poisson, le poisson, dizia, apontando para a água. E, para se fazer entender melhor, tinha lançado ao mar uma corda que encontrara na ponte, segurando-a na mão como se fosse uma linha.

Demorou um pouco para lhe explicar que as coisas não eram assim tão simples. Mas a obstinação das crianças de 5 anos é notoriamente ferrenha, e, em poucas horas, Patrick havia envolvido todas as outras crianças, 22 no total, no seu projeto de pescaria, forçando a tripulação do Mare Jonio a inventar alguma coisa.

A ideia vencedora foi de Fabrizio Gatti, um dos socorristas: ele pegou num cartão vermelho e começou a cortar muitas formas de baleias. Depois, escondeu-as pelo navio. Começou então uma surreal caça – ou, melhor, pesca – ao tesouro, com os peixinhos vermelhos escondidos entre os cobertores térmicos, os dourados e os prateados, ou entre as caixas de sais minerais, e com as crianças a correr no seu habitual frenesim.

O engraçado era o comportamento dos outros náufragos. Alguns não conseguiam sorrir. Outros estavam literalmente irritados. O mais aborrecido de todos era um camaronês de 46 anos. Porque tinha muitas dores, como depois descobriram os médicos a bordo. Na Líbia, havia sido mantido durante dias numa gaiola com alguns cães de guarda de cuja ferocidade ele ainda trazia as marcas inconfundíveis nas costas, nas nádegas, nas pernas. No fim, porém, ele também foi forçado a sorrir.

Foi Ibrahim quem venceu a caça ao tesouro: um menino da Costa do Marfim, de 4 anos, que não tem dois dedos da mão esquerda: ele perdeu-os num tiroteio na localidade da qual, depois de ver o seu pai morrer, escapou junto com a mãe.

História semelhante à de todas as outras crianças a bordo: sim, aquele era o «bote dos órfãos». Ninguém tinha pai. Pelos motivos mais díspares: alguns são filhos da violência sexual sofrida pela mãe, outros de casamentos forçados, outros ainda simplesmente órfãos de algumas guerras, como Ibrahim.

A aventura da “pesca ao tesouro” terminou com o achado de um peixe de verdade, que “milagrosamente” subiu a bordo, sozinho, pouco antes do pôr do sol. Como um presente.

Naquele momento, Patrick estava com Ibrahim na ponte, olhando o fundo do mar e, de repente, deparam-se entre os seus pés com esse estranho animal alado. O pequeno começou a pular e a gritar, primeiro de medo e depois de alegria. E, finalmente, convencido pela mãe, lançou-o de volta ao mar.

 

Texto baseado em informações do jornal italiano La Reppublica

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