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15 abril 2023

Tomé e o seu misterioso gémeo

Tempo de leitura: 7 min
Reflexão do P. Manuel João Correia do Evangelho de João (20,19-31), lido na liturgia do II Domingo de Páscoa, e que apresenta a figura de Tomé.
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Hoje, o segundo Domingo da Páscoa, é a Páscoa de São Tomé! Os temas que o Evangelho nos propõe são muitos: o Domingo (o primeiro dia da semana), a Paz do Ressuscitado e a alegria dos apóstolos, a Missão dos apóstolos (segundo o Evangelho de João), o Pentecostes Joanino, o dom e a tarefa confiada aos apóstolos para perdoar os pecados (pelo qual, há já alguns anos, celebramos o Domingo "da Divina Misericórdia"), a comunidade (da qual Tomé se tinha ausentado!), mas sobretudo o tema da fé. Vou apenas deter-me sobre a figura de Tomé.

Tomé, o nosso gémeo

O seu nome, Tomé, significa 'duplo' ou 'gémeo' (da raiz hebraica Ta'am, grego Dídimo). Tomé ocupa um lugar de destaque entre os apóstolos; talvez seja por isso que lhe foram atribuídos os Actos e o Evangelho de Tomé, apócrifos do século IV, "importantes para o estudo das origens cristãs" (Bento XVI, 27.9.2006). 

Gostaríamos de saber quem é o gémeo de Tomé. Ele poderia ser Natanael (Bartolomeu). De facto, esta última profissão de fé, feita por Tomé, corresponde à primeira, feita por Natanael, no início do evangelho de João (1,45-51). Além disso, o seu carácter e o comportamento são surpreendentemente semelhantes. Finalmente, os dois nomes aparecem relativamente próximos na lista dos Doze (ver Mateus 10,3; Actos 1,13; e também João 21,2). 

Este gémeo incógnito dá lugar à afirmação de que Tomé é "o gémeo de cada um de nós" (Tonino Bello). Tomé consola-nos nas nossas dúvidas como crentes. Nele nos espelhamos e, através dos seus olhos e mãos, nós também "vemos" e "tocamos" o corpo do Ressuscitado. Uma interpretação que tem o seu encanto!....

Tomé, um "duplo"?

Na Bíblia, o mais famoso par de gémeos é o de Esaú e Jacob (Génesis 25,24-28), antagonistas eternos, expressão da dicotomia e polaridade da condição humana. Será que Tomé (o 'duplo'!) traz dentro de si o antagonismo desta dualidade? Capaz, por vezes, de gestos de grande generosidade e coragem, enquanto outras vezes é incrédulo e teimoso. Mas quando confrontado com o Mestre, a sua profunda identidade como crente que proclama a sua fé com prontidão e convicção emerge novamente. 

Tomé traz consigo o seu "gémeo". O Evangelho apócrifo de Tomé sublinha esta duplicidade: "Antes eras um, mas tornaste-te dois" (n.º 11). "Jesus disse: 'Quando de dois vos tornardes um, então sereis os filhos de Adão'" (n°105). Tomé é a imagem de todos nós. Também nós carregamos dentro de nós um tal 'gémeo', defensor inflexível e firme das suas próprias ideias, obstinado e caprichoso nas suas atitudes.

Estas duas realidades ou 'criaturas' (o velho e o novo Adão) coexistem mal, em contraste, por vezes em guerra aberta, nos nossos corações. Quem nunca experimentou o sofrimento desta laceração interior?

Agora, Tomé tem a coragem de enfrentar esta realidade. Ele permite que o seu lado sombrio, adverso e "descrente" se revele, e isso leva-o a confrontar-se com Jesus. Ele aceita o desafio lançado pela sua interioridade "rebelde" que exige ver e tocar... Leva-a a Jesus. E, perante as evidências, o "milagre" acontece: os dois "Tomés" tornam-se um só e proclamam a mesma fé: "Meu Senhor e meu Deus"! 

Infelizmente, isto não é o que acontece connosco. As nossas comunidades cristãs são formadas quase exclusivamente pelos 'bons gémeos', submissos, mas também ... passivos e amorfos! A esses corpos falta vitalidade! O facto é que eles não estão presentes em toda a sua 'totalidade'. A parte energética, instintiva, a parte que precisaria de ser evangelizada, não aparece no 'encontro' com Cristo. 

Jesus disse que veio para os pecadores, mas as nossas igrejas são frequentadas pelos 'justos' que ... não sentem a necessidade de se converter! Aquele que deveria converter-se, o outro gémeo, o "pecador", deixamo-lo tranquilamente em casa. É domingo, e ele aproveita para "descansar" e confia o dia ao "gémeo bom". Na segunda-feira, então, o gémeo dos instintos e paixões estará em plena forma para assumir de novo o comando. 

Jesus em busca de Tomé

Oxalá Jesus tivesse muitos Tomé! Na celebração dominical, é sobretudo deles que o Senhor vem em busca... Eles serão os seus "gémeos"! Deus procura homens e mulheres "reais", que se relacionam com Ele como são: pecadores que "sofrem" na sua própria carne a tirania dos instintos. Crentes que não têm vergonha de aparecer com este lado incrédulo e resistente à graça. Que não vêm para causar uma boa impressão na "assembleia dos crentes", mas para se encontrar com o Doutor da Misericórdia Divina e ser curados. É destes que Jesus se torna irmão! 

O mundo precisa do testemunho de crentes honestos, capazes de reconhecer os seus erros, dúvidas e dificuldades, que não escondem a sua "duplicidade" atrás de uma fachada de "respeitabilidade" farisaica. 

A missão também precisa de discípulos autênticos e não "de pescoço torcido"! De missionários que olham directamente para a realidade do sofrimento e tocam com as mãos as feridas dos crucificados de hoje!... 

Tomé convida-nos a reconciliar a nossa duplicidade para fazer a Páscoa! 

Palavra de Jesus, segundo o ... Evangelho de Tomé (n.o 22.27): “Quando fizerdes de dois um e quando tornardes o interior como o exterior e o exterior como o interior, a parte de acima como a de baixo, e fizerdes do homem e da mulher uma só coisa (...), então entrareis no Reino!”

P. Manuel João Correia, missionário comboniano*

* O padre Manuel João Correia, missionário comboniano, sofre de esclerose lateral amiotrófica e nesta fase da doença só mexe os olhos. Recorre a um “ponteiro ocular”, um programa de computador especializado que lê o movimento dos olhos, para juntar as letras e formar palavras, seja para fazer perguntas, dar alguma opinião, solicitar alguma ajuda, ou escrever textos. Vive actualmente na comunidade comboniana para doentes e idosos, de Castel D’Azzano (Verona, Itália).

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