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19 abril 2024

Na senda do Padre Chico

Tempo de leitura: 6 min
O padre Francisco Medeiros é um missionário comboniano natural dos Açores a trabalhar na África do Sul. Conta com um sem-número de histórias, peripécias e vivências para partilhar.
Fernando Félix e Maria José Mendonça
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O padre Francisco Medeiros (dir.) à conversa com o jornalista Fernando Félix na sua missão na África do Sul

 

O dia 19 de Dezembro de 2023 amanheceu nublado e chuvoso. O padre Chico telefonou às visitas que esperava receber na missão de Acornhoeck, informando-as de que a chuva persistia há umas horas e do mísero estado em que a estrada ficara, alertando para os possíveis riscos. De facto, havia poças, “lagos naturais” e troços quase intransitáveis a viaturas sem asas nem remos. Era um daqueles trilhos africanos em que, nalgumas partes, os buracos (agora, cheios de água) tinham um bocadinho de estrada, noutras, nem tanto. Não obstante, os seus visitantes perseveraram no encontro. E valeu a pena. O padre Chico gosta de conversar e a sua vasta experiência de vida e de missão é inspiradora.

Os dias sombrios do apartheid

Os piores momentos vividos pelo missionário na África do Sul terão tido lugar no período do apartheid. Relatou diversos episódios inimagináveis, como aquele em que, na catedral, os fiéis se recusaram a receber a comunhão das mãos de um bispo negro…; aqueloutro sobre a dificuldade em realizar o funeral de uma senhora, branca, que deixou bem explícita a vontade de ter a sua colaboradora e amiga, negra, presente no momento da despedida, e nenhuma igreja queria aceitar fazê-lo…; o do estranho assalto a que o próprio padre Chico foi sujeito, em que nada lhe foi roubado, além da sua paz de espírito, ao ser tacteado no peito e nas costas com uma faca, num claro “aviso” para acabar com a defesa dos “pretos”…; o daquela ocasião em que, indo com a empregada da missão às compras, foi mandado parar pela polícia, que o elucidou de que não podia levar a mulher no banco da frente e que, à hora a que circulavam, ela não tinha autorização para andar na rua, pois já passava do horário de recolher obrigatório para os negros…

Hoje – defende o missionário –, a segregação acontece mais em relação aos migrantes, que muitos sul-africanos hostilizam, alegando que lhes retiram postos de trabalho, que, diga-se, constituiu um bem semi-raro no país, uma vez que metade da população se encontra desempregada.

Misturas religiosas

O sincretismo é algo a que o padre Chico está mais do que habituado. Diz ele: «De manhã, vêm à Igreja Católica, à tarde, vão a outra, e não sabem distinguir, não vêem as diferenças.»

Escolha não falta: existem, na África do Sul, à volta de 15 mil igrejas cristãs! «Os africanos são intrinsecamente espirituais, todavia, precisamos de saber que conceito possuem eles de Deus», explica o missionário.

E as crenças fundem-se umas nas outras. Se, por acaso, um indivíduo padecer de uma dor de dentes, infere, automaticamente, que alguém lhe deseja mal. Portanto, para ele, impõe-se uma vingança. O problema é que não sabe de quem se trata. Então, enche uma garrafa com água benta e parte-a no meio da estrada, na esperança de que, ao afectar o maior número de pneus e pés possível, consiga atingir os do “culpado”. Argumentou o padre Chico: «Mas eu, que não tenho nada que ver com a tua dor de dentes, sou obrigado a ficar com o meu carro furado?» Recebeu de resposta: «É assim e pronto.» Contra factos não há argumentos!

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O padre Francisco Medeiros tem uma experiência de vida e de missão inspiradoras

 

Os funerais

Na África do Sul, a cada funeral corresponde, tradicionalmente, uma grande festa, com música, comes e bebes (que podem incluir matança de vaca), e tudo aquilo a que uma festança dá direito. A questão é que, inúmeras vezes, o viúvo, a viúva ou a família tem de se endividar, e é muito difícil conseguir reerguer-se, o que aumenta a desgraça. Paralelamente, e dado que os funerais ocorrem aos sábados (a fim de se poder prolongar a folia noite dentro), a refrigeração dos mortos (que ignoram ser a sexta-feira o dia ideal para falecer…) é um negócio imensamente lucrativo. Mais: com o intuito de terem e darem um sepultamento condigno aos seus, as pessoas vão, ao longo da vida, pagando uma taxa mensal às agências funerárias. Ao chegar a altura de utilizar o fundo, o maior ou menor requinte da cerimónia dependerá do montante amealhado. Contudo, basta falhar um pagamento e todo o dinheiro despendido até então ficará perdido.

Principais desafios

Muitas são as lutas travadas pelo padre Chico Medeiros no dia-a-dia da missão. E refere alguns exemplos.

Falta de material para a catequese (têm de recorrer à leitura da Bíblia); em 2024, vai dar prioridade à catequese juvenil.

Poligamia (recordou a inquietação de um catequista com uns 70 anos, casado com três mulheres, ao qual morreu a segunda; estando as outras duas velhotas e já não se conseguindo mexer muito, ele desabafou com o padre Chico a necessidade de arranjar uma mais nova, que o pudesse ajudar…). A situação social de pobreza, com cifras gigantescas no campo da droga, da delinquência e do crime.

Os reptos da missão funcionam para o padre Chico como alavancas que continuam a impulsioná-lo com entusiasmo e garra. 

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Maio 2024 - nº 746
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