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30 março 2019

RD Congo: Oportunidade perdida?

Tempo de leitura: 19 min
Félix Tshisekedi é o 5º presidente em Kinshasa, depois de eleições que muitos consideram a primeira fraude do regime a favor de um candidato da oposição. Joseph Kabila ofereceu-lhe o título, não o poder.
Margarida Santos Lopes
Jornalista
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A oposição ganhou, pela primeira vez, as eleições presidenciais na República Democrática do Congo (RDC). Não o candidato preferido pela maioria dos que foram à urnas em 30 de Dezembro de 2018 – como asseguram milhares de observadores da Igreja Católica e outras fontes independentes – e sim o que terá feito um pacto com o regime de Joseph Kabila.

A 19 de Janeiro, Martin Madidi Fayulu, seguro de ter conquistado o primeiro e não o segundo lugar, perdeu um recurso para forçar uma recontagem de votos. O Tribunal Constitucional validou os resultados preliminares da Comissão Eleitoral Nacional Independente (CENI) – duas instituições leais a Kabila – e determinaram que Félix Antoine Tshisekedi Tshilombo será o quinto presidente do país.

«Estou empenhado em reconciliar todos os congoleses», garantiu um exultante Tshisekedi, conhecido o veredicto final. «O Congo que vamos construir não será o da divisão, do ódio ou do tribalismo. Será o da reconciliação, centrado no desenvolvimento, na paz e na segurança.»

Os nove juízes do Tribunal Constitucional consideraram «sem fundamento e sem provas» o recurso de Fayulu. Descreveram como «autênticos e sinceros» os números oficiais, que dão ao representante da coligação Lamuka (Acorda) apenas 34,8%, contra 38,57% de Tshisekedi, da Cap pour le Changement (CACH)/União para a Democracia e Progresso Social (UDPS), e 23,8% de Emmanuel Ramazani Shadary, o impopular delfim designado por Kabila, este pressionado a desistir de um terceiro mandato, que já havia terminado em 2016.

Horas depois da decisão judicial, o poderoso bloco regional SADC, de que, designadamente, fazem parte Angola, África do Sul e a Zâmbia, vizinhos do Congo, saudaram a vitória de Tshisekedi e apelaram à «unidade, paz e estabilidade». A União Africana, dominada pelo Ruanda, desistiu de uma programada visita para tentar suspender os resultados.

Reafirmando que obteve mais de 60% dos votos – certificados pela Conferência Episcopal (Cenco), que formou e mobilizou 38 824 observadores –, Fayulu proclamou-se «único presidente legítimo» e denunciou «um golpe constitucional». Mantendo-se fiel aos princípios de não violência que nortearam a sua campanha, apelou a «manifestações pacíficas por todo o território nacional».

Entretanto, com o reconhecimento da comunidade internacional, Félix Tshisekedi foi empossado presidente da República Democrática do Congo no dia 24 de Janeiro.

Étienne e Félix

As palavras de Fayulu não diferem muito das que Étienne Tshisekedi – pai de Félix – pronunciou em 2011, quando o rival Joseph Kabila foi oficialmente declarado vencedor das eleições em 2011, com 49% dos votos contra 32%. Também o carismático fundador da UDPS se declarou «presidente legítimo», renegando os resultados como «uma provocação ao povo congolês». As reacções de violência, naquela altura, foram imediatas.

Porque Étienne nunca transigiu face a Laurent-Désiré ou a Joseph Kabila, nem a Mobutu Sese Seko, foi uma surpresa quando Félix, herdeiro do defunto pai na liderança da UDPS, dividiu a oposição de livre iniciativa, sem precisar de incentivo do regime à deserção.

Em Novembro de 2018, Tshisekedi aceitou uma reunião em Genebra com Fayulu e outros seis pesos-pesados, entre eles Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente, e Moïse Katumbi, antigo governador da província do Catanga, ambos no exílio, excluídos por Kabila da corrida eleitoral.

“Fatshi” (a abreviatura para os seus três primeiros nomes) queria ser o candidato único contra Kabila, mas perdeu a votação para Fayulu. Não querendo dar parte de fraco na presença dos outros, esperou vinte e quatro horas para renegar o acordo, alegando pressões dos “combatentes” (militantes de base) da UDPS. Uma semana depois, formou a CACH com Vital Kamerhe, que em tempos dirigira a campanha de Joseph Kabila.

Talvez consciente de que jamais venceria Fayulu, e que se este reabilitasse Bemba e Katumbi não mais teria hipótese de ganhar, Tshisekedi «terá calculado que concorrer sozinho lhe daria a possibilidade de negociar com Kabila uma espécie de convivência», diz à Além-Mar, em entrevista por correio electrónico, o académico americano Pierre Englebert, autor de Africa: Unity, Sovereignty and Sorrow.

Evitar o cenário “JLo”

Kabila, por seu turno, «escolheu Shadary [sem uma base política própria] porque tinha medo de um cenário tipo ‘JLo’», adianta Englebert, aludindo ao novo presidente angolano, João Lourenço, que tem vindo a renegar as políticas do antecessor, José Eduardo dos Santos.

«Duvido que Tshisekedi esperasse ser declarado vencedor», salienta o professor de Política Africana em Pomona College, Claremont (Califórnia, EUA), e senior fellow no Africa Center do think-tank Atlantic Council. Talvez se tivesse proposto para primeiro-ministro de Shadary. Mas, posteriormente, vendo o regime numa «impossível situação negocial», e encorajado pelo experiente Vital Kamerhe, terá exigido a presidência em troca de uma aliança com a Frente Comum para o Congo (FCC, a coligação de Kabila). «É difícil acreditar que sairá beneficiado deste negócio.»

Na madrugada de 10 de Janeiro, apresentados os resultados provisórios que o colocavam à frente de Fayulu, o filho de Étienne prestou «homenagem» a Joseph Kabila: «A partir de hoje, já não o vemos como adversário, mas como parceiro para a mudança democrática no nosso país.»

«Apesar de tudo, a vitória de Tshisekedi foi uma vitória da oposição», realça Pierre Englebert. «Não era este, seguramente, o desfecho preferido do regime. Mas o seu candidato sofreu uma derrota tão humilhante [menos de um de cada quatro congoleses votaram nele] que nem enredos eleitorais o salvariam.»

Kabila percebeu que cometeu «um erro catastrófico» ao nomear Shadary e teve de preparar um plano B: virar-se para a UDPS, de onde vieram os seus dois últimos primeiros-ministros – que o partido expulsaria, daqui resultando quatro diferentes facções.

Englebert acredita que Kabila assinou um acordo secreto com um opositor dócil, para preservar o poder político, dominar o aparelho de segurança, manter a sua fortuna e até a guarda e o palácio presidencial, «propriedade privada, comprada a Mobutu». Uma protecção que lhe seria negada por Fayulu, dos mais corajosos críticos do regime.

“Fatshi” versus Fayulu

Líder de um partido com apenas três deputados, Fayulu mobilizou e cativou movimentos de cidadãos, sobretudo jovens, precisamente por ser um outsider. Economista de 62 anos, nasceu na antiga Leopoldville, nos derradeiros dias do Congo Belga, sétimo dos oito filhos de um operário e uma vendedora em mercados de rua.

Formado em Paris e nos EUA, graças à generosidade de uma família numerosa, fez uma longa carreira de executivo na companhia petrolífera Exxon, que lhe permitiu correr o mundo sem nunca se desligar da RDC – o maior país da África Subsariana, do tamanho da Europa Ocidental.

O único ponto em comum entre Fayulu e Tshisekedi será a igreja pentecostal que ambos frequentam ao domingo, em Kinshasa. Félix, 55 anos e cinco filhos, raramente saiu da sombra do pai, “um mestre” que nunca pretendeu imitar. Terá sido a mãe, Marthe Kasalu, que o encorajou a seguir as pisadas paternas, embora desde criança acompanhasse o activismo de Étienne.

Quando a UDPS foi criada em 1982, a família Tshisekedi foi forçada por Mobutu a refugiar-se na província natal de Cassai, até 1985. Félix partiria então para Bruxelas, onde se licenciou em Marketing e Comunicação. Críticos fazem notar que nunca exerceu um cargo de topo; detractores sugerem que o diploma belga é forjado (a ser verdade, a Constituição impede-o de ser presidente).

Em 2008, Tshisekedi tornou-se secretário nacional para as relações externas da UDPS. Em 2011, foi eleito para a Assembleia Nacional pela terceira cidade do país, Mbuji-Mayi. Nunca ocupou o lugar por não reconhecer que Joseph Kabila derrotara o pai nas presidenciais. Em 2017, um mês após a morte de Étienne, por embolia cerebral, Félix ascendeu à chefia do partido.

Como candidato ao posto que o pai nunca ganhou, “Fatshi” jurou «perpetuar o sonho» de Étienne: fazer do combate à pobreza «uma causa nacional», erradicar a «gangrena da corrupção» e levar a paz ao Leste do Congo onde várias milícias permanecem activas mais de quinze anos após a Grande Guerra de África, que causou 5,4 milhões de mortos e 2 milhões de deslocados internos, segundo a ONU.

Tensões identitárias

Em Kinshasa, onde começou a estudar Teologia em 2001 e vive desde há cinco anos, o padre Marcelo Oliveira não acredita nas promessas de Tshisekedi. Em seu entender, ele «será uma marioneta nas mãos de Kabila», o único que domina o Exército, provável futuro presidente do Senado (membro vitalício) – segundo na linha de sucessão à Presidência – com uma maioria no Parlamento e nas assembleias provinciais depois de a FCC ter obtido outra questionável vitória nas legislativas.

«Com Fayulu», diz-nos, por telefone, o administrador das catorze comunidades dos Missionários Combonianos na RDC, «Kabila seria entregue ao Tribunal Penal Internacional, para julgamento por crimes de guerra e genocídio. Os seus opositores no exílio, como Bemba e Katumbi, regressariam ao país, o que seria uma afronta pessoal.»

Certo é que, na capital congolesa, desde o anúncio dos resultados provisórios, os partidários de Tshisekedi não páram de festejar. «[No dia 10 de Janeiro], saí de casa às 5 da manhã para celebrar missa, e nas ruas e bares era só música e dança, muitas pessoas eufóricas, erguendo ramos de árvores, um enorme engarrafamento de motas», relata o missionário comboniano, ressalvando, porém, que, noutras áreas da cidade também houve violentos protestos.

Num país onde «cerca de 60%» dos mais de 80 milhões de habitantes são católicos e onde a Igreja tem sido «uma família que fala a uma só voz», Marcelo Oliveira nota que os seus paroquianos estão divididos politicamente. Confessa que receia «uma explosão de tensões».

«As pessoas ouviram os apelos de Fayulu e foram pacientes quando o regime adiou eleições (se esperaram dezoito anos para se livrar de um bandido, poderiam esperar mais algumas semanas), inventou um misterioso incêndio que queimou máquinas electrónicas de voto, reprimiu brutalmente activistas e recorreu a todo o tipo de provocações», destaca o padre Marcelo.

Indiferentes à chuva torrencial e a longas e caóticas filas, milhões de pessoas confiavam que, com a ida às urnas, mudariam o regime. «Sentem-se enganadas.»

Quem exultou foi o povo Luba na região de Cassai, a que pertence “Fatshi”. Como escrevem Tatiana Carayannis e Herbert Weiss na revista Foreign Affairs, as «políticas identitárias» reforçaram-se ainda mais no Congo. «Aos olhos de muitos partidários de Tshisekedi, os Lubas mereciam o poder nacional que já foi de outros grupos étnicos e regiões – os Bacongos, depois da independência da Bélgica em 1960, com o presidente Joseph Kasavubu, [a província do] Equador, com Mobutu Sese Seko, e o Catanga, com os Kabilas, pai e filho».

Apesar de recuperado um aparente equilíbrio regional e étnico, Carayannis e Weiss não descartam um crescendo de instabilidade. «Muitos deputados da UDPS que não conseguiram lugares no Parlamento terão dificuldade em aceitar esta derrota e poderão acusá-lo de ter negociado um acordo que só o favorece a ele. Se o descontentamento aumentar, o seu círculo de fiéis poderá estreitar-se e o seu partido, o único que há muito mantém uma base nacional, poderá ficar reduzido a Cassai ou apenas aos Lubas.»

«Kabila, ao escolher Shadary, também desiludiu alguns membros da sua coligação que têm ambições políticas». Além disso, «a decisão de entregar a Presidência a um opositor irá alienar mais aliados, o que o enfraquecerá» dentro do seu Partido do Povo para a Reconstrução e a Democracia (PPRD), parte da FCC.

Tragédia de Shakespeare

Foreign Affairs e outros analistas admitem que a RDC, ameaçada por uma epidemia de ébola e onde proliferam mais grupos armados do que movimentos pacifistas, «tem todos os ingredientes» para uma sublevação violenta. Mas Patrick Litanga, antigo aluno da Universidade Católica em Kinshasa, tem «esperança no futuro» da pátria.

«Fui um pessimista durante muitos anos, até chegar à irrefutável conclusão de que o Congo é uma tragédia de Shakespeare, não uma tragédia grega», diz Litanga à Além-Mar, de Louisville (Kentucky), nos Estados Unidos, país para onde emigrou em 2003.

«Ao contrário do que acontece nas tragédias clássicas gregas, os Congoleses não estão predestinados a viver em tumulto e na miséria, independentemente do que fizerem os principais actores. Pelo contrário, tal como numa tragédia de Shakespeare, os protagonistas congoleses têm agora a oportunidade de guiar as mãos do destino.»

«Como ele nunca falou abertamente sobre o “cálice envenenado” que recebeu, talvez possamos especular que Tshisekedi tenha planos para afastar Kabila a longo prazo», explica o actual doutorando em Relações Internacionais. «Se aproveitar o “mandato popular” para fazer acordos quer com a FCC ou o Lamuka, Tshisekedi poderá adoptar medidas contra um poderoso Kabila [presidente do Senado]. Apesar dos constrangimentos, não podemos subestimar o simbolismo que uma presidência de Tshisekedi representa para os seus seguidores.»

Tshisekedi poderá «galvanizar o povo se começar por se aproximar de Jean-Pierre Bemba e Moïse Katumbi», anota Litanga. Aqueles dois homens «não abdicaram de ter uma carreira política, e certamente que não a irão prejudicar para ficar ao lado de Fayulu».

O estudante congolês acredita que «uma tragédia pode ser evitada» no país que poderia ser o mais rico do mundo – tem as maiores reservas de cobalto e significativos depósitos de diamantes, ouro, cobre, urânio, coltan (minério que alimenta os nossos telemóveis) –, mas onde metade da população vive com menos de um dólar por dia, empobrecida por décadas de colonialismo, escravatura e corrupção.

«Desde o assassínio do primeiro-ministro Patrice Lumumba, em 1961, o principal problema no Congo tem sido uma acentuada centralização de poder presidencial», avalia Patrick Litanga. «Nestas eleições, foi criada a oportunidade de o Governo, o Parlamento, os tribunais e a sociedade civil conquistarem um certo grau de autonomia e de independência face ao órgão executivo.»

Talvez os próximos cinco anos de mandato de Félix Tshisekedi, se ele estender a mão a Fayulu, possam ser os de uma verdadeira transição para a democracia. A Igreja Católica, actor incontornável, com uma vasta rede de escolas e hospitais, não absolveu o “pecado original” de Félix. Conscientes da repressão mortífera de actos de desobediência civil, os bispos mostram-se conciliadores: «Os resultados eleitorais mostram que, pela primeira vez na História recente do nosso país, abre-se a porta a uma alternância na hierarquia do Estado.»

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