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23 dezembro 2019

A gaivota e o embondeiro

Tempo de leitura: 6 min
Conto de Natal
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«Aos ouvidos da gaivota tinha chegado a história daquela velha árvore africana, o embondeiro. Segundo diziam, ela albergava no seu interior a água da Vida. Quem dela bebia, tinha a sua felicidade assegurada.

Diante de tal expectativa, a pequena gaivota pôs-se rapidamente a caminho. Quase sempre com o vento a favor, ela atravessou planícies e florestas e sulcou o céu sobre o vasto mar até chegar a uma terra desconhecida. O seu destino já não devia estar muito longe.

De repente, ela viu-o, altivo, desafiador, traiçoeiro. O seu destino tinha de ser aquele. Mas o que lhe estava a acontecer? Ela não conseguia voar! Precisamente agora que estava tão perto de alcançar o seu sonho! Por mais que batesse as asas com toda a força, as suas perninhas mal conseguiam elevar-se um palmo do chão. A gaivota nunca se tinha sentido tão sozinha e desamparada. Tinha medo, muito medo. De repente, ela viu no céu um pássaro enorme. Ficou admirada ao ver o seu voo tão elegante e, com grande entusiasmo, disse-lhe:

– Tens asas e podes voar, és dos meus. Poderias levar-me até ao velho embondeiro?

O abutre soltou uma gargalhada:

– Ah, ah, ah! Quem pensas que és, passarinho?

E, muito zangado, gritou:

– Por aqui estamos fartos de mentirosos como tu, que vêm em bandos para a nossa terra, apenas para nos tirar a comida.

– Não é verdade! – respondeu a gaivota. – Eu só quero alcançar a árvore dos meus sonhos.

– Pois então sonha, que eu ficarei à espera, ah, ah, ah!

E o abutre levantou voo rindo.

Sem compreender muito bem aquelas últimas palavras, a pequena gaivota prosseguiu o seu caminho com determinação.»

Mariama cerra os punhos com força e, com a parte de trás do pulso, seca as lágrimas que, de repente, correram ao recordar essa lenda que tantas vezes lhe tinha contado a sua mãe. A sua mãe... Como desejaria ela que os seus braços longos e delgados a envolvessem de novo, como quando era pequena e algum pesadelo não a deixava dormir! Agora, ela sentia-se como aquela pequena gaivota. Longe de casa e sozinha.

Poucas meninas ao seu redor se atreveram a tanto, mas ela não estava disposta a que aqueles homens que apareciam de vez em quando a voltassem a tocar apenas porque era mulher, ou pobre, ou ambas as coisas. Nem ver a sua mãe sofrer, porque, mais um dia, a comida não fora suficiente para toda a prole. E ela não permitiria que nenhum dos seus irmãos acabasse a mendigar naquelas ruas incertas. De modo que, sem dar muitas explicações, seguiu os passos dos seus amigos Omar e Modou. Via-se a regressar à sua terra natal, dentro de poucos anos, como enfermeira, como Teresa, a missionária que trabalhava no dispensário. Compraria uma casa na cidade, com electricidade e água, onde viveria toda a família. Ela tiraria a sua mãe dos campos de algodão e vê-la-ia, finalmente, a trabalhar no ateliê de costura com que tanto sonhava.

Com todas estas esperanças, Mariama, com apenas 15 anos, tinha deixado o Senegal e havia-se posto a caminho. Todavia, aquele caminho estava cheio de pedras e nele havia perdido depressa os seus amigos. Alguém lhe contou que vira Omar nuns becos de uma pequena cidade no Níger. Arrastava uma perna e perdera uma vista. De Modou, desde que aqueles homens os assaltaram no deserto, nada mais voltou a saber. Ela conseguiu escapar às máfias e, assim, alcançar a costa de onde podia ver a terra prometida. Depois veio a travessia naquela balsa, patera ou como queiram chamar-lhe ao meio de transporte em que atravessou as frias águas do mar. As lembranças acumulam-se na sua cabeça como um turbilhão: as noites vagando pelas ruas daquela cidade desconhecida, o medo e a fome, o primeiro centro para menores, as radiografias nas suas mãos porque ninguém acreditava na sua idade, uma e outra noite na esquadra...

As lágrimas voltam a embaciar os seus olhos, mas ela sente-se mais calma. Enquanto bebe o chá quentinho, pensa em Abbou, que está prestes a completar 18 anos e, então, terá de deixar o centro; em Elaid, a quem a sorte – à qual ele se abandonara – não lhe sorriu; ou em Faid, que finalmente começou a trabalhar e até já pensa em casar com Samira e constituir família.

«A gaivota, depois de um extenuante caminho, alcançou o embondeiro. Apesar das suas poucas forças, entrou com passo firme, todavia comprovou, desolada, que ali não havia nem uma gota de água. E, então, chorou, chorou e chorou. Primeiro de pena, por não encontrar o tesouro pelo qual se havia posto a caminho; todavia, em seguida correram também as lágrimas da emoção, porque foi capaz de chegar lá; e irrompeu o choro da alegria, simplesmente porque se sentia bem. Ela saiu do tronco da árvore e, sem olhar para trás, retomou o voo disposta a encontrar a verdadeira felicidade. Enquanto isso, as suas lágrimas nutriram as velhas raízes do embondeiro, que se viu surpreendido por umas preciosas flores brancas suspensas nos seus ramos apenas umas horas, as suficientes para demonstrar, com a beleza do seu aroma e da sua cor, que todo o esforço tem a sua recompensa.»

Ouve-se música de Natal. O céu nocturno está limpo e, do pátio do centro, distinguem-se bem as estrelas. Mariama está convencida de que são as flores brancas que se soltam dos seus saudosos embondeiros. Teresa, a missionária, contou-lhe certa vez que foi precisamente uma estrela que guiou os Magos até ao local onde nasceu o Menino Jesus. Agora ela está convencida de que também encontrará o seu caminho. 

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