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07 abril 2020

Quando defender a terra é crime

Tempo de leitura: 5 min
Protestar contra as desigualdades ou defender a terra ou o ambiente, ou cobrir acontecimentos para os reportar a todos são actividades de alto risco na América Latina. Outro relatório de arrepiar.
Fernando Sousa
Jornalista
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O ano de 2019 voltou a ser triste para a América Latina em matéria de direitos humanos. Aconteceu-lhe de tudo, da violência política aos crimes de género e contra o ambiente. No mais recente dos relatos sobre a região, a Amnistia Internacional (AI) nem nos deixa respirar fundo.

Estão frescos, ou persistem, conflitos como o que assola o Haiti, de que falámos aqui no mês passado, o da Colômbia, entalada entre a irritação popular e a guerra do ELN, ou do Chile, onde as pessoas se fartaram das desigualdades e passaram a pedir tudo. Ou o da Venezuela, que só se agrava.

A crise venezuelana, então, assume proporções difíceis de imaginar: 4,8 milhões de fugitivos, entre homens, mulheres e crianças, que países como o Peru, o Equador ou o Chile barram contra tudo o que estipula o direito internacional. 

Multidões em fuga

E o que dizer das multidões que tentam passar, no México, para os Estados Unidos? O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, denuncia a AI, forçou dezenas de milhares de pessoas a esperar no México, em condições perigosas, ao abrigo do protocolo dito de “Protecção a Migrantes”; isto enquanto decorrem, muito discretos, programas de deportação rápida, e aumenta a pressão sobre a Guatemala, El Salvador e as Honduras para assinarem acordos de “terceiro país seguro”.

Porque fogem as pessoas? Ou se revoltam? Entre outros motivos por denegação de justiça, como o clamoroso caso da Guatemala, cujas autoridades fecharam a Comissão Internacional contra a Impunidade. Ou pelas políticas contra o ambiente, como as de Trump, que retirou os Estados Unidos dos Acordos de Paris, ou dos países que partilham a selva amazónica, com destaque para o Brasil.

O caso brasileiro será um dos mais escandalosos. As políticas do presidente Jair Bolsonaro, no poder desde o princípio de 2019, alimentaram os devastadores incêndios da selva, deixando as comunidades locais desprotegidas, e animou madeireiros e ganadeiros a actuar à margem da lei. 

Violência política

À violência política no contexto dos protestos, que causou 83 mortos no Haiti, 47 na Venezuela, 35 na Bolívia, oito no Equador e seis nas Honduras, num total de 202, com o ano a terminar sem grandes novidades em relação ao assassínio da vereadora e activista brasileira de direitos humanos Marielle Franco, assassinada em 2018, acrescente-se a que recaiu sobre defensores dos direitos à terra ou ao ambiente, como na Colômbia, onde se registaram 106 homicídios, ou vitimou mais jornalistas, como no México, com outros dez mortos.  

«Não podemos permitir que os governos das Américas continuem a repetir os erros do passado. Em vez de restringir os direitos humanos conquistados, precisam de ampliá-los», afirmou Erika Guevara-Rosas, directora para as Américas da AI, na apresentação do relatório.

A Amnistia denuncia ainda com particular vigor a violência de género e o atropelo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres quer nas Américas quer nas Caraíbas. Dois dos países alvo das críticas são a República Dominicana e El Salvador. Outro é a Argentina, onde, a cada três horas, uma menor de 15 anos dá à luz, na sequência de uma gravidez forçada decorrente de violação. 

Boas notícias

O ano de 2019 também teve coisas boas, diz a organização de direitos humanos. No fim do ano, 22 países assinaram o Acordo de Escazú, um inovador tratado regional sobre o ambiente. Em Fevereiro passado, o Equador ratificou o documento, o oitavo país a fazê-lo, faltando só três para que ele entre em vigor. E, nos Estados Unidos, um tribunal do Arizona absolveu o voluntário Scott Warren da acusação de proteger dois migrantes ilegais, depois de lhes ter oferecido comida, água e um lugar para dormir.

Outra boa notícia em matéria de direitos humanos foi a absolvição de Evelyn Hernández, acusada de homicídio agravado depois de sofrer uma emergência obstétrica em El Salvador, embora alguns procuradores tenham recorrido.

Enfim, mulheres e jovens também se destacaram à frente dos protestos, como Argentina, México e Chile, mostrando que as gerações do futuro estão apostadas a resistir aos atropelos contra os seus direitos básicos.

Há, pois, esperança.

 

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