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11 abril 2020

Costa do Marfim: O ano da incerteza

Tempo de leitura: 13 min
A Costa do Marfim, um dos países mais prósperos da África Ocidental, enfrenta um ano decisivo. As presidenciais de Outubro deviam ajudar a resolver os numerosos desafios com que a população se confronta.
Chema Caballero
Jornalista
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Um intenso cheiro a hambúrgueres e batatas fritas proveniente do Burger King dá as boas-vindas aos viajantes que transpõem o limiar da porta de chegadas do Aeroporto Internacional Félix Houphouët-Boigny de Abidjan. É um dos muitos franchisings que chegaram à Costa do Marfim, especialmente à principal cidade, nos últimos anos. Os estabelecimentos de comida rápida proliferam, sobretudo em centros comerciais, onde estão lado a lado com lojas de roupa, de desportos, de computadores e telefones, ou supermercados de marcas familiares a qualquer consumidor português. A isto têm de se acrescentar os bares, clubes ou restaurantes que oferecem manjares de todo o mundo. Além disso, já não é preciso sair de casa para ter acesso a toda esta oferta: as empresas de entrega ao domicílio também desembarcaram no país. Tudo parece indicar que esta nação da África Ocidental vive um momento dourado.

Com o fim da década passada, que se estreou em 2011 com uma grave crise político-militar, a taxa de crescimento do país subiu até chegar quase a 8% ao ano. De facto, a Costa do Marfim foi uma das economias que mais rapidamente cresceram em todo o mundo em 2019, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Outras instituições etiquetaram o país como um dos mais propícios para fazer negócios, entre muitos outros elogios. Possivelmente, estas boas notícias influenciaram o surgimento de uma classe média poderosa, o estabelecimento de multinacionais e de investidores internacionais, assim como o regresso de instituições regionais e mundiais com os seus séquitos de funcionários.

Também não convém deixar de mencionar que parece ser uma febre pela construção e as novas infra-estruturas, que surgem por todo o lado: passagens superiores, uma nova ponte, porto recreativo, embelezamento das praias e passeios marítimos… executadas muitas delas por empresas multinacionais. Talvez seja a soma de tudo isto o que confere a Abidjan [conhecida como Manhattan dos Trópicos] esse charme cosmopolita, mundano e um tanto malandro que se enreda com os seus eternos engarrafamentos.

Fora da cidade

A miragem desvanece-se quando se abandonam as ruas principais e se penetra nos bairros como Abobo ou Yopougon, ou se acaba na Nacional 1 com as suas faixas duplas ao chegar à capital política do país, Yamoussoukro (presidida pela maior basílica católica do mundo), e o veículo começa a ziguezaguear e a saltar numa tentativa de se esquivar dos infinitos buracos que decoram as, agora estreitas, estradas que vão para norte. A visão do país muda radicalmente e o paraíso fictício dá lugar a uma realidade muito diferente em que a maioria da população se vê obrigada a executar arrevesados malabarismos para chegar ao fim do mês. Isto indicaria que tanto – e tão rápido – crescimento económico não serviu para criar a riqueza necessária que mitigue as desigualdades que envolvem o país. A taxa de pobreza, se bem que tenha diminuído ligeiramente nos últimos anos, situa-se nos 46,3%. E em 2018, a Costa do Marfim ocupava o lugar 179, de 189 países, no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.

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Mulher a trabalhar num campo de arroz em Moossou, nos arredores de Abidjan (Foto Lusa)

Esse crescimento tão-pouco ajudou a criar indústria. O grosso da economia nacional depende do sector agrário, que emprega cerca de metade da população. A Costa do Marfim é um dos principais produtores mundiais de cacau, café e óleo de palma, entre outros produtos. Pela sua parte, a chamada economia informal representaria quase 40% do PIB marfinense, de acordo com o FMI. Esta actividade, que permite que muitos jovens e mulheres, principalmente, sobrevivam, subtrai rendimentos provenientes de impostos e taxas ao Estado e não permite que o talento empresarial se concentre em actividades mais produtivas que também favoreceriam a criação de emprego. Os números do desemprego no país oscilam consideravelmente segundo a fonte consultada, mas todas coincidem em que são altas, sobretudo entre os jovens. Infelizmente, as diversas tentativas empreendidas para diversificar a economia não deram, até ao momento, os resultados apetecidos. Daí, porventura, outro dos grandes paradoxos desta pujante economia: os milhares de jovens obrigados a emigrar. Tanto é assim que os marfinenses que chegam à Europa se posicionam como o terceiro grupo mais numeroso, depois dos nigerianos e dos guineenses, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM).

O Governo marfinense declarou 2019 como «um ano de acções sociais» com um programa que tem como principais objectivos fazer com que os serviços sociais sejam acessíveis aos segmentos da população mais vulneráveis, criar milhares de postos de trabalho para os jovens e contratar mais de 10 mil professores do ensino básico e secundário. Até agora, poucos resultados se registaram: apenas protestos e greves de professores e funcionários.

Eleições em 2020

O crescimento económico também não serviu para superar as divisões que levaram o país à guerra civil em duas ocasiões neste século. Muitos dos antagonistas que participaram naqueles conflitos voltam a enfrentar-se nas eleições presidenciais, agendadas para Outubro de 2020, o que muitos cidadãos vêem com fastio e cansaço. «Parece que andamos sempre em círculos, que tudo se repete. Não vejo que vamos para a frente», comenta André, aluno da Universidade Félix-Houphouët-Boigny de Abidjan.

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O Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, cumprimenta o seu homólogo costa-marfinense Alassane Ouattara (esq.), durante a visita que fez à Costa do Marfim, em Junho de 2019 (Foto Lusa)

O actual presidente, Alassane Ouattara, joga com a incerteza sobre o seu futuro. Não se sabe se renunciará a ser candidato ou se insistirá em que tem direito a um terceiro mandato, desafiando assim o limite imposto pela Constituição de 2016. Até agora manteve que o seu primeiro mandato não conta. A concretizar-se esta opção, a oposição iria enfurecer-se, tal como grande parte da sociedade civil, o que poderia desencadear grandes protestos por todo o país. Pela sua parte, aquele que foi presidente entre 1993 e 1999, Henri Konan Bédié, diz considerar a possibilidade de um regresso ao poder e aliou-se com outro ex-presidente, Laurent Gbagbo, para desafiar o actual partido no governo. Gbagbo representa também uma grande incógnita. A sua recusa em reconhecer a sua derrota nas eleições de 2010 é considerada o rastilho da segunda guerra civil, e levou-o a ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), onde finalmente foi absolvido de todas as acusações que sobre si impendiam. Encontra-se actualmente pendente do último recurso apresentado perante o tribunal pelo Ministério Público, mas tanto ele como os seus partidários estão convencidos de que poderá regressar ao país antes do próximo acto eleitoral. «Conta com numerosos apoios, sobretudo no Sul, e a sua chegada representaria um forte revés para o actual Governo», comenta Jean-Pierre, sentado num maquis [espécie de snack-bar] de Yamoussoukro, onde se declara seu firme seguidor. Uma opinião que não é partilhada por todos, especialmente no Norte do país. Finalmente, Guillaume Soro, ex-líder do movimento rebelde que lutou contra o Governo de Gbagbo e ex-presidente do Parlamento, que se distanciou de Ouattara em 2017, também anunciou que se candidatará à presidência do país. Mas Soro foi formalmente acusado de preparar «uma insurreição civil e militar», além de malversação de fundos públicos e lavagem de dinheiro pelo procurador-geral, o que por agora o impede de regressar ao país desde Paris para evitar a sua detenção.

«Gostamos muito de nos ameaçarmos uns aos outros»

O medo da violência associada às eleições está muito presente. Os antecedentes mais próximos estão nos comícios locais realizados a 13 de Outubro de 2018. Protestos e distúrbios seguiram-se ao acto eleitoral após a publicação dos primeiros resultados, o que produziu várias mortes e numerosos feridos. Há pessoas que temem que as disputas se reproduzam e escalem a níveis incontroláveis quando se aproxime Outubro e reavivem, assim, o conflito. O temor de uma nova guerra sempre paira no ar. Contudo, o escritor Armand Gauz, último ganhador do Grande Prémio Literário da África Negra, acredita que não sucederá nada de importante. «Nós, Marfinenses, gostamos de gritar e de nos ameaçarmos. É possível que, como outras vezes, as eleições tragam alguma violência e confrontos, como já parece ser habitual por quase toda a África. Mas não se chegará a muito mais. As pessoas não querem guerra. Outra coisa é que encontremos candidatos que realmente representem os interesses do povo. Até agora, os que se apresentam são os de sempre e com eles pouco mudará a situação», comenta entre cada sorvo de koutouku, um licor local feito de ervas e raízes, que partilha com um grupo de artistas e artesãos num maquis de Grand-Bassam, onde ocorreram algumas das altercações mais graves após as eleições de 2018.

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O presidente francês Emmanuel Macron (centro) durante a visita à Costa do Marfim em Dezembro de 2019 (Foto Lusa)

Um dos tertulianos aventura-se a afirmar que na Costa do Marfim «não acontecerá nada que a França não queira que aconteça. A França continua a ter a última palavra em tudo o que acontece aqui». Esta é uma crítica que se estende por todas as ex-colónias francesas. Perante ela, Paris procura lavar a sua imagem. Assim, durante uma visita a Abidjan, de 20 a 22 de Dezembro de 2019, o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou o fim do franco CFA, um dos principais mecanismos de controlo de Paris sobre os seus antigos territórios africanos: uma moeda utilizada desde a época colonial por 14 países da África Ocidental e Central e muito criticada, especialmente por grandes sectores da população. Além disso, o mandatário francês pediu que se virasse a página depois do colonialismo, que considerou um «erro da República». Não parece que estas palavras tivessem muito efeito sobre os Marfinenses, que desconfiam de que os Franceses queiram perder os seus privilégios e benefícios na zona. «Basta ver o grande número de militares franceses estacionados neste país», comenta outro dos tertulianos de Grand-Bassam. Oficialmente, na base de Port Bouët, um dos bairros da capital marfinense, há cerca de 950 soldados franceses para vigiar os interesses estratégicos da França no Oeste e Centro do continente africano. Daí as afirmações que dizem que nada acontece na Costa do Marfim sem que a França o aprove. 

 

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