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08 maio 2020

Geração 26

Tempo de leitura: 19 min
O genocídio ruandês de 1994 deixou milhares de órfãos. Deixou-os à intempérie num país que tinha de se reconstruir da dor, do ressentimento e do rancor. Mais de um quarto de século depois, alguns deles superaram as adversidades e impulsionaram iniciativas que escapam à fatalidade.
Judit Figueras
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Ruanda: Os órfãos do genocídio são o símbolo da reconstrução

Ainda há um vazio por pintar, mas no seu olhar já se vislumbra a esperança daquele menino sonhador. Com um rolo mergulhado na tinta branca e ao ritmo de tambores, Emmanuel, além de continuar o seu trabalho, ajuda a que apareça uma trintena de sorrisos. Pertencem a um grupo de crianças que espreitam por detrás da janela. Os miúdos, ocultos no seu rubor, observam com espanto os primeiros esboços da que será a sua nova biblioteca.

Há poucos meses, Emmanuel começou a construção de um espaço didáctico para os órfãos que vivem numa das zonas rurais de Gisenyi, uma cidade no Noroeste do Ruanda. «Muitas destas crianças não podem frequentar a escola e ficam na rua durante o dia. Os pais adoptivos viajam para o Congo para trocar produtos e não regressam senão ao anoitecer», explica o jovem.

Em 2014, Emmanuel começou a ajudar estes menores. Juntamente com alguns amigos, o jovem estabeleceu um espaço reduzido onde dava aulas de inglês e de leitura a vinte crianças. Agora são mais de 200 as crianças que apoia com instrução e comida.

Neste bairro, todos conhecem Emmanuel. Todos sabem o que faz pelos seus filhos. É por isso que, quando o jovem passeia pela zona, todos reconhecem o seu trabalho com um gesto gratificante. Atrás dele, uma multidão de miúdos desarranjados – e a maioria descalços – segue-o como se de um messias se tratasse. Dançam ao seu ritmo, cantam as suas melodias e acompanham cada um dos seus passos.

Os órfãos do genocídio

Em 2012, o Governo do Ruanda anunciou o fecho de todos os orfanatos do país e fixou 2020 como data-limite para se tornar a primeira nação de África que prescinde destes hospícios. Desde que empreendeu este plano, o Executivo de Paul Kagamé encerrou mais de uma vintena dos 39 orfanatos que havia no País das Mil Colinas. Entre eles, o Orfanato Noel de Nyundo, uma das instituições que mais órfãos acolheu após o genocídio de 1994, que foi a casa de Emmanuel.

Este jovem foi um dos 95 mil órfãos que, segundo a UNICEF, deixou o episódio mais sangrento da História do Ruanda. Uma tragédia que, depois de décadas de conflito entre as duas principais etnias do país, hutus e tutsis, rebentou no dia 6 de Abril de 1994 com o assassínio do então presidente ruandês Juvenal Habyarimana, que viajava de avião com o seu homólogo burundiano, Cyprien Ntaryamira. Durante cerca de 100 dias, mais de 800 mil ruandeses morreram por golpes de machete às mãos dos vizinhos, conhecidos e, até, familiares.

«Nunca conheci os meus pais. Um soldado encontrou-me na rua quando tinha apenas duas semanas de vida», assegura. Emmanuel nasceu em 1994, os seus pais foram assassinados durante o genocídio e cresceu na companhia de mais de 600 crianças que o Orfanato Noel de Nyundo acolheu, e aos quais chama agora «irmãos».

Todas as tardes, quando acaba o seu trabalho com as crianças, Emmanuel calça as suas meias azuis até aos joelhos, calça as chuteiras e veste o dorsal 7 à frente da sua equipa de futebol. Chama-se Kunda Village Team e tem o nome do bairro onde cresceu. Grande parte dos seus companheiros também são órfãos do genocídio que passaram a infância no Noel de Nyundo. «Mantemo-nos unidos porque queremos seguir caminhando juntos», diz o jovem. São seus companheiros de equipa, mas, sobretudo, são seus companheiros de vida.

Quando o orfanato fechou, muitos deles já eram maiores de idade e não foram atribuídos a nenhuma família. Ficaram sem lar. «O Emmanuel tirou-me da rua, ofereceu-me um trabalho e um tecto onde dormir», explica Richard, um dos melhores amigos de Emmanuel. «Ainda hoje me dá comida e roupa para vestir. Em troca, eu ajudo-o com o seu projecto para as crianças», afirma o jovem. A cada semana, Richard e outros amigos de Emmanuel revezam-se para dar aulas de Inglês, Matemática e leitura aos pequenos e, nos fins-de-semana, lavam-lhes a roupa e oferecem-lhes alguma comida.

Pobreza, apesar de tudo

O orfanato que acolheu Emmanuel fechou as suas portas em 2012, e os menores que aí residiam foram entregues a familiares afastados ou a famílias de acolhimento. Contudo, a maioria destas famílias não dispunha de recursos suficientes para poder pagar o custo da educação das crianças.

O Ruanda é um dos países africanos que mais progrediu economicamente desde o início do século – com uma influência directa da ajuda económica exterior, multiplicada depois do genocídio. Concretamente, a sua economia cresceu a uma média anual de 7,1% nos últimos cinco anos. Não obstante, segundo o Banco Mundial, o índice de pobreza neste país, localizado na região dos Grandes Lagos, continua sem baixar dos 38%. Muitas são as famílias que não podem assumir gastos escolares como os livros, o uniforme ou a matrícula, que ronda entre os oito e os 20 euros anuais. Tal como estima o Fórum Económico Mundial, 60% da população ruandesa aufere menos de 1,15 euros diários. Uma situação que levou a um nível de abandono escolar no país que rondou os 42% em 2015, de acordo com o Programa de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (PNUD).

Graças ao seu esforço e à sua visão empreendedora, Emmanuel conseguiu obter financiamento e subvenções para custear a educação e a cobertura sanitária de muitas destas crianças. Além disso, conseguiu edificar uma nova biblioteca onde os que não frequentam a escola podem continuar a aprender, e os que recebem educação podem passar o tempo extra-escolar.

Sorrisos nas margens do Kivu

A poucos quilómetros, Davide, Ellie e Musa entregam-se ao jogo de realizar movimentos de ancas e saltos mortais impossíveis. As suas gargalhadas invadem a calma que transborda nas margens do Kivu, um dos grandes lagos de África. Ao pôr do Sol, os três caminham sem rumo, com o olhar perdido, procurando aquela que será a sua cama esta noite. Como cada tarde, Davide, Ellie e Musa jogaram a ser crianças outra vez, mas, ao anoitecer, os seus pesadelos voltam para lhes arrebatar a infância. Há já alguns anos que os rapazes se reúnem na praia do lago para fazer aquilo de que mais gostam. Ali, o seu professor espera-os, impaciente. Michael também aprendeu acrobacias nesta margem quando tinha a sua idade. Agora, é um ginasta consolidado com habilidades extraordinárias e, sobretudo, com um desejo comovedor de instruir os seus alunos nesta disciplina.

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Dois professores e dois alunos de soul of Rwanda fazem uma acrobacia (Foto Gemma Capdevilla)

Tal como aos miúdos que treina, Michael viveu nas ruas de Gisenyi. A sua vida começou marcada pelo acontecimento mais terrível que jamais viveu o Ruanda. Nasceu a 10 de Outubro de 1994 num dos campos de refugiados que acolheu mais ruandeses após o genocídio, o campo de Masisi, no antigo Zaire, actual RDC. Depois de um ano no campo, Michael, a sua mãe e o seu irmão mais velho, John, voltaram a Gisenyi. Todavia, nada restava do que fora a sua casa, apenas ruínas. Tão-pouco encontraram os seus familiares mais chegados, todos tinham morrido.

A mãe dos miúdos caiu numa depressão que a bloqueou por completo. Deixou de tomar conta deles, pelo que John e Michael começaram a mendigar na rua. Desta maneira, pelo menos, podiam conseguir alguma comida. Tinham apenas 6 e 2 anos. «Quando fiz 8 anos, descobri um grupo de miúdos que praticavam acrobacias no lago», explica Michael. Pouco a pouco, tanto ele como o seu irmão foram-se introduzindo no grupo até os integrarem. A maioria destes menores tinha perdido as suas famílias durante o genocídio. «A acrobacia ajudava-me a esquecer e, por algumas horas, permitia-me ser uma criança alegre e feliz», acrescenta o jovem.

Em 2012, Michael, o seu irmão e Gato, um dos seus amigos, juntaram um grupo de rapazes que viviam na rua e começaram a ensinar-lhes as técnicas básicas desta modalidade artística. Em poucos anos, o grupo de crianças que instruem foi crescendo e as suas aptidões também progrediram. «Estas crianças vivem o que um dia eu vivi, por isso quero que, por meio da acrobacia, sintam a mesma paz e alegria que eu sentia.»

Crianças sem lar

Muitas das crianças que perderam os pais durante o genocídio não foram encaminhadas para orfanatos. Segundo afirmava a Unicef no seu relatório «Lutando para sobreviver», no ano 2001, cerca de 300 mil crianças viviam em lares sem nenhum adulto responsável à sua frente. Em 2019, um relatório da Human Rights Watch estimava em 2882 os menores que viviam na rua. A problemática, portanto, ainda não tinha sido erradicada. As ruas de Gisenyi são testemunhas disso. Ao passear pelo mercado central de Rubavu, à volta de 50 crianças pedem esmola aos condutores. Outras jazem abandonadas em caixas de cartão sujo esperando que as horas, os dias passem. De repente, um deles desperta e sai disparado com um sorriso de orelha a orelha para abraçar o seu amigo John, o irmão de Michael. Em menos de cinco minutos, uma multidão de cabeças rodeia-o para o tocar e beijar. John e Michael são, certamente, as únicas pessoas que os tratam como são: crianças.

«Muitas vezes, temos de suprir o papel que os seus pais deveriam ter exercido», comenta John. «Vivo perto do mercado e cada dia vejo mais crianças na rua. No total são para aí 300. Mais de 50 assistem cada tarde às nossas lições», acrescenta o miúdo. Soul of Rwanda é o nome que dá vida ao projecto de dança, acrobacia e ioga que empreenderam os dois irmãos. Em Fevereiro de 2019, formalizaram a organização com a qual querem ajudar estes menores para que possam frequentar a escola. Soul of Rwanda é uma escola de acrobacia, mas, sobretudo, é uma escola de companheirismo, amizade e amor.

Uma luta diária

Nos arredores de Rwamagana, uma cidade no Leste do país, Adeline tenta relaxar uns minutos. Sentada num banco, tem nas mãos um copo de leite fresco. Entre cada sorvo, desvia o olhar para a porta. São os primeiros minutos da tarde em que não entra ninguém no restaurante. São os primeiros minutos do dia em que pode descansar um pouco e a pensar em si mesma. Em Julho de 2019, a jovem abriu este negócio em que oferece bananas verdes, leite e mandazi, um doce tradicional ruandês, aos vizinhos da zona. «Os meus clientes pedem-me mais variedade no menu, mas não tenho muitos recursos, apenas os alimentos que cultivo na minha horta», explica.

Às sete da tarde, Adeline fecha o negócio e volta à sua casa. Nos dias de sorte pode apanhar um táxi para chegar antes que escureça. «Espero que no futuro possa arrendar um local mais próximo da minha casa. O gasto em transporte podia destiná-lo a adquirir mais produtos como arroz, açúcar e óleo», lamenta-se. Uma vez em casa, começa o seu trabalho real. Tem de preparar o jantar para alimentar as suas duas filhas, de 11 e 8 anos de idade, dar-lhes banho e ajudá-las a fazerem os TPC. As meninas vão à escola todos os dias. A mãe encarrega-se de que tenham o uniforme e o material escolar pronto para poderem frequentar as aulas. «Vivo por e para as minhas filhas. Tudo o que ganho no meu negócio destino-o aos seus estudos, para que, contrariamente a mim, elas possam alcançar o seu sonho algum dia», explica a jovem.

Adeline acaba de fazer 25 anos, mas os seus sonhos e esperança esfumaram-se há já muito tempo. Os pais eram tutsis e foram assassinados pelos seus próprios vizinhos durante o genocídio de 1994, apenas uns dias depois de ela ter nascido. Depois do trágico acontecimento, uns familiares afastados acolheram a menina. Ainda assim, a sua vida não iria ser um caminho fácil.

Marcada pela rejeição

«Essa família nunca me quis», assegura Adeline. Depois das aulas, a rapariga tinha de trabalhar no negócio dos seus pais adoptivos. Muitos dias tinha de trabalhar durante o horário escolar, o que afectava as suas notas. Aos 13 anos, Adeline ficou grávida e a mulher com quem vivia expulsou-a de casa. «Era uma rapariga muito estudiosa, queria ser engenheira informática. Mas quando chegou a gravidez, a minha vida acabou», sentencia a jovem enquanto limpa as lágrimas.

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Davide, uma criança que vive nas ruas de Gisenyi (Foto Gemma Capdevilla)

Depois de meses a viver na rua, uma vizinha deu-lhe abrigo em sua casa. Adeline teve a sua primeira filha e três anos mais tarde voltou a engravidar. A partir desse momento, a mulher que a acolhera pediu-lhe que saísse de casa. Adeline deu à luz a sua segunda filha na rua. Com apenas 16 anos, encontrava-se só, desamparada e com duas criaturas para manter. Num acto de desespero, procurou refúgio no único lugar onde se sentia segura: o terreno no qual os seus pais tinham vivido. Nada restava do que fora a sua casa, mas a terra continuava a ser fértil. Começou a cultivar frutas e verduras para poder alimentar as suas filhas. Com barro e água foi fabricando tijolos e, pouco a pouco, construindo o seu novo lar.

Além do mais, agora Adeline tem uma vaca. A ONG local Msaada, destinada a ajudar viúvas e órfãos do genocídio, entregou-lhe um destes animais. Com o leite que a vaca produz, a rapariga pode dar de comer às suas meninas e, ao mesmo tempo, vendê-lo no seu restaurante. «Adeline começou uma nova vida depois de se instalar na parcela dos seus pais, mas continua a lutar diariamente para sobreviver», assegura o director da Msaada, Damascene Ntambara.

O jantar está pronto, mas Adeline prefere continuar a escutar enquanto as suas filhas cantam e brincam à volta da fogueira que reúne esta família. Não está muito orgulhosa de como decorreu a sua vida, mas ao olhar para as suas filhas, sabe que está a fazer algo de bom.

Vinte e seis anos do episódio mais cruel

Este ano o Ruanda comemora o 26.º aniversário do genocídio. No ano passado, por ocasião dos vinte e cinco anos daquela barbárie, o Governo ruandês organizou uma série de eventos nacionais e internacionais, marchas solenes e actos comemorativos. Um conjunto de acontecimentos conhecidos como Kwibuka, uma palavra que significa «recordar».

Ao contrário do Governo, Emmanuel, Michael e Adeline preferem não recordar. «Não sei o que aconteceu aos meus pais e realmente não quero saber. Apenas quero concentrar-me no futuro das crianças», assegura Emmanuel.

Estes três sobreviventes fazem 26 anos em 2020. Emmanuel não sabe exactamente em que dia nasceu, mas como cada ano, vai celebrá-lo no Natal com os seus amigos do orfanato. Desta vez, na recém-inaugurada biblioteca. Michael vai festejá-lo em Outubro com o seu irmão, os seus companheiros de acrobacia e com as crianças que fazem parte da sua já formalizada escola, Soul of Rwanda. Adeline abriu o seu negócio em Julho do ano passado, o mês do seu aniversário, e com ele chegou mais esperança para as suas duas filhas.

Emmanuel quer ajudar os órfãos, Michael as crianças que vivem na rua e Adeline luta cada dia pelas suas filhas. Os três nasceram durante o genocídio e, depois de superarem muitos obstáculos, agora caminham na mesma direcção e partilham a mesma meta: oferecer uma vida melhor à geração seguinte.

 

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