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27 julho 2022

Vocação: encontrar e encontrar-se

Tempo de leitura: 9 min
Viver a vocação é sempre sinónimo de desinstalação, de saída, de ir à procura, de pôr-se a caminho, de encontro.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

Por estes dias, tenho-me debruçado sobre as palavras do Papa Francisco quando este, na encíclica Fratelli Tutti, fala do modo único de o ser humano se realizar. Nas palavras do papa, «o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude “a não ser no sincero dom de si mesmo” aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: “Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro”. Isso explica porque ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que “a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte”» (Fratelli Tutti, n.o 87).

A partir da reflexão do papa, parece-me evidente que se está perante dois pontos fundamentais. O primeiro diz respeito à realização pessoal, ao modo como podemos encontrar a verdade que nos habita e experienciar a vivência de uma vida autêntica e verdadeiramente feliz. O segundo ponto essencial que aqui se destaca é a importância da pessoa do outro em todo este processo. Fechar-se em si mesmo nunca é algo que gera vida. Ao contrário, é algo que rompe qualquer possibilidade de viver autenticamente a partir daquilo que cada um é no mais íntimo do seu ser. Consequentemente, o «ser com os outros» e assumir uma responsabilidade para com o sofrimento dos outros é o motor de toda a possibilidade de, não apenas viver de acordo com aquilo que se é, mas também (e sobretudo) viver em constante realização daquilo que se deseja ser.

Neste excerto da encíclica, parece claro que “encontrar” e “encontrar-se” são duas faces de uma mesma moeda, sendo impossível separar uma da outra, ou de ter uma sem a outra. Na vocação, usando esta metáfora da moeda, temos também as duas faces, sendo no assumir de ambas que a vocação é discernida e vivida. Além disso, na vocação encontramos ainda, de modo único e inequívoco, a presença do metal precioso onde as duas faces da moeda se inscrevem. Esse metal é cada pessoa, mas a preciosidade que ele apresenta é dom de Deus. Importa ainda não esquecer que uma moeda dentro do mealheiro de nada serve. Do mesmo modo, a vocação fechada no “adiamento” ou nos “caprichos do eu” jamais servirá para o que quer que seja (não permitirá encontrar nem encontrar-se e, consequentemente, não trará felicidade nem para a própria pessoa nem para os outros).

Encontrar, procurando e encontrando-se

Encontrar algo significa sempre que algo estava perdido ou, quando muito, estava fora da nossa vista/alcance, mas que apenas tomamos plena consciência da sua existência no momento em que o encontramos. A procura e o encontro parecem ser inseparáveis, mesmo quando não temos consciência da existência de algo que, sem termos bem consciência, nos fazia falta. Não é por acaso que, muitas vezes, nos acontece, perante certas coisas/realidades, exclamarmos: «Eh! Era mesmo isto que eu precisava!» De repente, faz-se luz e algo vem ao encontro dos nossos anseios mais profundos (e mesmo inconscientes). De certa maneira, alguém viu o que nós não conseguíamos ver; alguém procurou por nós e deu-nos a possibilidade de encontrar! No caso da vocação, é precisamente este o processo de discernimento: nós procuramos e vamos ao encontro, não de certezas absolutas e definitivas, não de soluções de vida fáceis; mas daqueles que nos ajudarão a procurar dentro de nós mesmos e a encontrar mesmo aquilo que nem imaginávamos.

 

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(© 123RF)

 

Há quem diga que quem procura encontra (o próprio Evangelho faz referência a isso, por exemplo, em Mt 7,7). Esta é uma verdade essencial para não andar à deriva. De facto, permanecer sentado no sofá à espera de que a «vocação chegue e comece a acontecer», está longe de ser uma possibilidade. Viver a vocação desde o primeiro momento (desde o início do discernimento sério e responsável) é sempre sinónimo de desinstalar-se, de ir à procura, de pôr-se a caminho. Se pensarmos bem, esta é a verdade humana desde o início da sua existência. Ficar parado não é opção. A inércia e a apatia não são para os seres vivos, mas para as coisas. Andar ao sabor do vento (de acordo com o que os outros dizem, mais do que pôr-se em marcha para ouvir e dialogar com quem nos pode, de facto, compreender e auxiliar no caminho) é reduzir a vida ao estado vegetativo ou ao estado animal. O ser humano – porque criado à imagem e semelhança de Deus – é chamado a uma felicidade que vai além do facto de existir. Se para os seres vivos, de modo geral, a vocação para sobreviver é a tónica da existência, para o ser humano, a vocação que o define como tal implica mais do que sobreviver – exige viver!

A vida, para ser vivida, requer constantemente uma acção pró-activa. Lá diz o velho ditado que nada se consegue sem esforço! Pois é, sem ir à procura e sem ir além de «si mesmo», a visão da vida, do mundo e daquilo que nos realiza plenamente torna-se turva a ponto de nos tornar cegos relativamente ao que somos, ao que sonhamos ser e ao mundo do qual fazemos parte.

Viver a vocação: encontros sem encontrões!

As nossas opções e decisões de vida nem sempre agradam a gregos e troianos. Todos parecem ter opiniões sobre o que deveríamos fazer e/ou ser, mas... é a nós que cabe procurar para encontrar e para nos encontrarmos a nós mesmos durante todo esse caminho (nunca terminado!). Estas tensões, que muitas vezes parecem obstaculizar a realização vocacional, são parte integrante do processo de discernimento. Procurar quem nos acompanhe neste processo é fundamental (mas exige sair de casa e de si mesmo). No entanto, a procura não pode circunscrever-se ou terminar com o encontro com aqueles que nos ajudarão a discernir. Ao contrário, tudo é um caminho de encontro, de escuta e de diálogo. Isto significa, como vimos que defende o Papa Francisco, experimentar o valor de viver através de rostos concretos. Estes encontros com os outros, por muito que estes outros tenham uma visão diferente da nossa e pretendam impor a sua vontade para a nossa vida, não podem tornar-se encontrões, momentos de disputa acesa e violenta. Ao contrário, faz parte do caminho e realização vocacional trabalhar para que estes momentos sejam verdadeiros encontros de amor. E, quando assim, sabemos que dialogar com quem amamos, mesmo quando há discordância, nunca é uma luta para ver quem tem razão, mas um caminho para que as partes se ouçam, se compreendam e sejam capazes de manter vivo o amor, mesmo que não se chegue a um entendimento racional de todas as posições. Isto parece uma missão difícil, ou até mesmo impossível, em alguns casos... mais uma razão para que o discernimento vocacional se faça a partir de encontros e atendendo ao caminho que se for trilhando com aqueles que têm por missão ajudar-nos a discernir.  

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