Opinião
16 maio 2025

Cântico das criaturas

Tempo de leitura: 4 min
Celebrar como Igreja o centenário do Cântico das Criaturas leva-nos a uma mudança radical na nossa relação com a Criação.
Frei Álvaro Cruz da Silva
Franciscano da Ordem dos Frades Menores
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Ocorre este ano a celebração do VIII centenário da composição do Cântico das Criaturas, escrito por S. Francisco com letra e música, à maneira das laudes religiosas do séc. xii. Este texto situa-se dentro dos Escritos de
S. Francisco
, no apartado dos louvores e orações, e é depois contextualizado em vários relatos da vida do santo.

Na Primavera de 1225, Francisco de Assis está gravemente doente e completamente cego, está aos cuidados da irmã Clara, no Convento de S. Damião, quando compõe em úmbrio-românico, língua vulgar falada pelo povo, o Cântico das Criaturas [Francisco virá a morrer em Outubro de 1226]. Afligido por muitas provações, recebe de Deus a certeza de viver na terra, como se já fosse do céu. S. Francisco, com um olhar de fé cheio de gratidão, contempla as maravilhas da Criação e consegue ver nelas a presença do Criador que lhes dá origem. As criaturas são irmãos e irmãs, porque são obra e dom do mesmo Autor; elas formam o universo visível, a começar pela beleza dos corpos celestes: o irmão e senhor Sol, até ao ar, à água, ao fogo e à irmã madre Terra. As criaturas louvam e agradecem a Deus Criador o seu existir.

Segundo S. Boaventura, «Francisco exultava em todas as obras saídas das mãos de Deus, e rejubilando de alegria na presença das criaturas, subia por meio delas até àquele que é a causa e a razão vivificante do Universo».

Celebrar como Igreja o centenário do Cântico das Criaturas leva-nos a uma mudança radical na nossa relação com a Criação, que consiste em substituir a posse pelos cuidados da Casa Comum. Na verdade, cada um de nós deve responder a estas perguntas com sinceridade: como quero viver a relação com as outras criaturas? Como um dominador que arroga para si mesmo o direito de fazer com elas o que quer? Como consumidor de recursos que vê neles uma oportunidade de aproveitar os mesmos? Ou como um irmão que pára diante da Criação, admira a sua beleza e cuida delas? Estamos perante um desafio antropológico e ecológico que determinará o nosso futuro, porque ele está interligado com o futuro da Terra.

A actual crise ecológica revela-nos que o «ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto» (Laudato Si’, 48). O ambiente humano e o ambiente natural são preservados e embelezados em conjunto. Cuidar da Casa Comum sem cuidar da casa interior, o nosso coração, não é o caminho certo: precisamos de uma conversão ecológica e integral ao mesmo tempo, porque «a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior» (Laudato Si’, 217).

Francisco de Assis tinha também em vista o perdão e a paz. Na última estrofe que juntou ao cântico lembra-nos que só aqueles que têm um coração capaz de vencer a lógica do ódio e da vingança através do perdão podem tornar-se instrumentos de reconciliação e harmonia, profecia e fraternidade, como o próprio Francisco, que viveu «numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros e com a Natureza» (Laudato Si’, 10).   

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Maio 2025 - nº 757
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