Opinião
19 agosto 2020

A perigosa ligação entre espiritualidade e imaginação

Tempo de leitura: 5 min
A criatividade é um traço humano valorizado por todas as pessoas. A imaginação é valorizada, mas associada ao que não é real. Por isso, ligar a imaginação à espiritualidade é viável porque muitas pessoas também consideram a religião como não real.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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A tecnologia é real, mas tem desafiado os limites daquilo que não é real através dos mundos virtuais que cria. De tal modo que a fronteira entre o que é real e o que não é, torna-se indefinível.
Estamos em risco de perder o contacto com a realidade ou estaremos a vislumbrar que a realidade vai para além do sensível e empiricamente verificável? No final de tudo, o que é a realidade depois da virtualidade tecnológica?
Estas questões são profundas e não é trivial encontrar uma resposta clara porque a realidade reveste-se de muitas camadas de informação e percepção. Porém, desde sempre que a imaginação estimula a criatividade que nos permite aprofundar a realidade.
Todos reconhecem estarmos numa Era da Informação que deu origem a uma forma de viver que não é real, mas virtual. Porém, esse não-real da vida virtual, também não é abstracto, mas concreto. Assim, a Era da Informação revelou que a realidade é maior do que o objectificável, trazendo para o horizonte do conhecimento concreto, noções abstractas como o sujeito, a interioridade, o pensamento, a ideia. Isto é, o que está no interior de cada pessoa e que faz uma ponte entre a realidade abstracta, invisível, fora da percepção dos outros, para a realidade concreta, visível e interagindo com a percepção dos outros através da comunicação. Mas há um risco.
Os mundos ilimitados do Minecraft, ou o entretenimento infindável de jogos como o World of Warcraft, o manancial de séries e filmes que actualmente temos à distância de um dedo, os murais das redes sociais como realidades que possuem uma infinita fonte de novidade, começam a dominar o nosso tempo, a atenção e a imaginação. De tal modo, que dominando a cabeça, começam também a dominar o coração e as mãos.
Toda a tecnologia interage fisicamente com o nosso cérebro e intelectualmente com a nossa mente. Depois, para que isso aconteça, é necessário que prenda a nossa atenção através do nosso coração que tende a bater mais por aquilo que o faz bater mais. Quero com isto dizer que a vivência do filtro-bolha daquilo em que estamos de acordo, impede-nos de contrastar a nossa visão com visões diferentes que desafiam o nosso modo de viver. Assim, os filtros-bolha, possibilitados por algumas tecnologias de informação, vão dominando o coração. Por fim, os dispositivos acabam por prender as mãos. Literalmente. Pois, a partir do momento em que o próprio ecrã é a interface de interacção com a vida digital, necessariamente, usa as nossas mãos para navegar e induzir a uma experiência de falso controlo sobre os conteúdos que despertam a nossa atenção e nos mantém na bolha.
A ligação entre espiritualidade e imaginação é perigosa porque liberta a mente, o coração e as mãos do mundo virtual. A espiritualidade convida, através da criatividade que brota da imaginação, a escutar atentamente o que nos atravessa a mente, a acolher o que é diferente para nos enriquecer com a diversidade, a usar as mãos para dar visibilidade às realidades invisíveis através da arte, escrita, ou até dos gestos.
Se não fosse a espiritualidade, a realidade ficaria limitada ao que está fora de nós e, dificilmente, descobriríamos toda aquela parte que o nosso interior permite descobrir. Abrir a vida à espiritualidade, através da imaginação e da criatividade, abre o horizonte de sentido e significado da experiência que fazemos da realidade.
O jovem Ramanujan estava de táxi com um amigo que olhou para o número do veículo, 1729, e afirma – ”Ora aí está um número bem aborrecido” – ao que Ramanujan responde – ”Muito pelo contrário. É o número mais pequeno expresso como a soma de dois outros números ao cubo, de duas maneiras diferentes.” Como podia ele saber isso? Para este talentoso matemático que faleceu cedo demais para tudo o que poderia ter atingido, – ”uma equação não tem qualquer significado se não expressar um pensamento de Deus.” Na sua mente, a espiritualidade e a imaginação ligadas, abriam-no a uma realidade maior do que a sensível e empiricamente verificável, levando o mundo a reconhecer nele um dos maiores génios matemáticos de todos os tempos. Imagina agora o que a espiritualidade poderia fazer em ti se a vivesses intensamente.

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