Opinião
16 outubro 2020

Oração como resposta ao dilema da conectividade

Tempo de leitura: 5 min
Será que um “Gosto” traduz a profundidade de um momento de adoração, fisicamente presente numa Igreja?
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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Uma ferramenta arrumada, aguarda por ser usada no momento em que precisarmos dela. Considerar as plataformas digitais que nos conectam ao longo do dia, como ferramentas, talvez não seja verdade. As plataformas digitais consomem quantidades enormes da nossa atenção. Por isso, somos nós que as usamos, ou somos usados por essas? Pois, como nos diz o Papa Franscisco na Carta Encíclica Fratelli Tutti (n. 75) – «assim procede a ditadura invisível dos verdadeiros interesses ocultos, que se apoderaram dos recursos e da capacidade de ter opinião e pensamento próprios.» Pode ser a nossa própria liberdade que esteja em jogo.

”O dilema das redes sociais”, um filme original da Netflix, serve de alerta para o que nos está a acontecer. Quando saímos de casa e damos conta de nos termos esquecido do nosso smartphone, muitas pessoas entram em estado de ansiedade tal, que são capazes de correr o risco de se atrasar nos seus compromissos para voltar a casa e ir buscá-lo. É como se ao longo do tempo, tivéssemos criado um cordão umbilical com esse dispositivo. Não foi essa, de todo, a ideia de Steve Jobs quando criou o iPhone.

Durante os primeiros 30 minutos da apresentação do primeiro iPhone, Jobs gasta-os a justificar a inovação da Apple que pretendia juntar a capacidade de fazer chamadas, com a de ouvir música e, por fim, ligar à internet. A ideia original era a de ter um mini-computador na mão que fazia chamadas. As Apps não eram a razão da inovação, nem mesmo se pretendia mudar os nossos ritmos de vida, como acabou por acontecer. Steve Jobs poderá ter dito – «hoje re-inventaremos o telefone» – mas as empresas de redes sociais dizem-nos – «e amanhã, re-inventaremos a sua vida.» A questão é: à custa de quê?

O jornalista Andrew Sullivan escreveu um artigo intitulado ”Eu costumava ser humano”, onde explora as implicações de viver da- e para-a-web. Nas suas palavras, «eu tentava ler livros, mas essa capacidade começava a eludir-me. Depois de umas poucas páginas, os meus dedos torciam-se por um teclado. Tentei a meditação, mas a minha mente resistia e restringia-se, enquanto tentava ficar parado. (…) Apesar de gastar horas por dia, sozinho e em silêncio, agarrado a um portátil, sentia como se estivesse numa constante cacofónica multidão de palavras e imagens, sons e ideias, emoções e criticismos – um túnel de vento de um ruído ensurdecedor. (…) Comecei a temer que este novo modo de viver se estivesse a tornar, realmente, num modo de não-viver.»

O Papa Francisco recorda que «a opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres» (FT 234). Mas quem são os pobres no mundo ocidental artificializado, senão os que vivem imersos numa vida digital que os leva a uma pobreza de experiências relacionais, ideias originais, e estilos de vida sustentáveis?

É verdade que o Papa refere-se às pessoas que passam, injustamente, necessidades materiais. Mas a paisagem virtual das pseudo-amizades que consomem a atenção das pessoas nas redes sociais, induzem-nas numa insconsciente procura viciante pela reacção dos outros, conduzindo o ser humano a uma pobreza espiritual que nenhuma App pode colmatar. Será que a vida espiritual está por um fio?

Quando tantas pessoas estão saturadas das dinâmicas virtuais, mas não conseguem desfazer-se delas? Por vezes, são as recaídas, como a de Sullivan, que servem para nos despertar do sono “zombico” induzido pelos luminosos ecrãs. Porém, existem muitos artigos espalhados pela web com uma visão de esperança das redes sociais em relação à vida espiritual. Basta ver como reagem as pessoas a pensamentos espirituais partilhados em páginas do Facebook. Mas será que um “Gosto” traduz a profundidade de um momento de adoração, fisicamente presente numa Igreja?

O convite à fraternidade que o Papa Francisco faz, leva-o a recordar-se do Beato Charles de Foucauld que, no acto de entrega total a Deus, se identificou «com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano» (FT 287). As multidões cabisbaixas que vagueam pelas ruas das nossas cidades assemelham-se a grãos de areia perdidos no deserto das distracções. A "capacidade de ter opinião e pensamento próprios” que referia no início provém dos espaços de solitude como os que encontramos na oração pessoal. Nunca como hoje, a oração se revela como resposta para uma vida física, mental e espiritual saudável. O primeiro passo passa por despertar para essa realidade, experimentando-a.

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