Opinião
16 novembro 2020

Cura contextual em tempo de pandemia

Tempo de leitura: 7 min
Não conseguimos controlar os vírus que afectam o nosso corpo, mas podemos controlar os contextos em que vivemos.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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A visão do corpo e da mente como uma dicotomia, pode levar-nos a ficar mais doentes sem necessidade, enquanto uma visão da sua dualidade apenas reconhece serem duas faces da mesma moeda que somos nós. A unidade indivisível entre o nosso corpo e a mente é uma visão essencial para ajudar a viver este tempo de pandemia. A Covid-19 pode não só afectar o nosso corpo, como também a mente das pessoas. Pode a mente curar o corpo, ou somente com medicamentos o conseguimos fazer?

O povo !Kung que habita no deserto do Kalahari em África, usa as mesmas práticas para as curas físicas e para a cura de distúrbios psicológicos. É a separação, em vez da distinção, entre o corpo e a mente que pode levar certas pessoas, no extremo, a uma morte psicológica, que depois se reflecte no seu corpo apesar de se estar saudável. Um exemplo desta ligação intrínseca entre corpo e mente encontramo-lo no relacionamento com animais selvagens.

Se participarmos num safári, e estivermos a caminhar pela savana africana, ao ver um leão, sentimos medo. Mas temer um leão é pensar temerosamente num leão, assim como admirar um cavalo é pensar admiravelmente num cavalo. Isto é, o pensar e a reacção física a esse pensamento ocorrem simultaneamente. Porém, se o leão estiver numa jaula, ou a participar num número num circo, não sentimos medo. Quer isso dizer que o temor, ou ausência desse, relativamente a um leão, depende do contexto da experiência que fazemos.

O contexto que vivemos hoje é de pandemia. O olhar suspeito que fazemos, involuntariamente, em relação a uma pessoa que tosse, provém do contexto porque, na verdade, desconhecemos as razões de tossir. Lembro-me dessa experiência quando comecei a tossir durante um telefonema, e do outro lado a pergunta de se isso não seriam sintomas. Eu estava a comer nozes antes de atender a chamada e essas, bem trituradas, por vezes, metem-se em sítios na garganta que nos levam a tossir. Do mesmo modo que o corpo não pode separar-se da mente, talvez os contextos físicos e psicológicos não possam separar-se.

Entre 1972 e 1981, Roger Ulrich, professor da Universidade de Delaware, avaliou qual o efeito que a vista da janela tinha sobre os pacientes que haviam sido sujeitos a uma operação cirúrgica. Aqueles cuja vista era permeada de coloridas árvores tomavam menos analgésicos para as dores e tinham períodos pós-operatórios mais curtos, em relação aos que tinham a janela voltada para os tijolos de uma parede.

Não conseguimos controlar os vírus que afectam o nosso corpo, mas podemos controlar os contextos em que vivemos e, experiências como as de Ulrich, mostram que as doenças físicas não são estados puramente fisiológicos, desligados do elemento cognitivo, isto é, dos nossos pensamentos. Algo que faz lembrar o efeito placebo. Será que afecta infecções virais?

Nos efeitos placebo, o próprio corpo é induzido pela mente a curar-se quando toma um medicamento a pensar que serve para o efeito. Ao contrário do que pensamos, o efeito placebo não é wishful thinking, mas um efeito real.

Na prática, como os comprimidos placebo não contêm qualquer princípio activo para curar a doença que pensamos estarem a curar, o princípio activo está na atitude mental do paciente diante da doença. Em 2011, investigadores da Universidade de Winscosin demonstraram o efeito positivo do placebo em relação à constipação, uma doença de natureza viral. Concluíram que a ideia geral de que as crenças e sentimentos em relação aos tratamentos pode ser fundamental no processo de cura e deveria ser tido mais em conta nas decisões dos médicos.

Quer isto dizer que podemos educar a vontade humana para se curar, até mesmo as doenças de natureza viral como a Covid-19? Não estaremos a correr o risco de desconsiderar o papel dos médicos e achar que sozinhos conseguimo-nos curar? A cura contextual, por exemplo, com um comprimido com efeito de placebo, precisa na mesma de um objecto físico para exercer o seu efeito. Nós somos incapazes de nos curarmos por desconhecermos muito ainda sobre o corpo e mente humanas, ainda envoltos em mistério. Daí a importância de que os médicos façam parte da cura contextual, sobretudo em relação ao Covid-19.

Num contexto de fé de quem acredita ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, tudo isto significa que há muito por saber sobre o que Deus criou em nós, quer ao nível físico como mental. Daí que a confiança na sua misericórdia nos ajude a encontrar o contexto certo para viver cada momento presente com intensidade de sentido e significado. Fomos criados para a vida, e o olhar saudável transcende o físico e inclui, também, o olhar da mente que só os pensamentos permitem ver.

Seriam muitos os contextos curativos a explorar em tempo de pandemia. Porém, existe um que me parece bastante simples de aplicar: a gratidão.

Estar gratos ao médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, aos professores, aos funcionários de estabelecimentos comerciais, às forças de segurança, e até mesmo ao estranho que realiza um acto de amor, sem pensar se será infectado ou não. Estar grato poderá gerar contextos que curam a mente e o corpo. A saúde integral vai para além do que sentimos, e inclui, também, o que pensamos. Sejamos gratos por isso.

Saber mais

  • Roger S. Ulrich, “View through a window may influence recovery from surgery”, Science, 224, 420, 1984: LINK
  • Barrett, Bruce, et al. "Placebo effects and the common cold: a randomized controlled trial." The Annals of Family Medicine 9.4 (2011): 312-322: LINK
  • Miller, Franklin G., and Ted J. Kaptchuk. "The power of context: reconceptualizing the placebo effect." Journal of the Royal Society of Medicine 101.5 (2008): 222-225: LINK
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