Opinião
09 maio 2019

Lógica evangélica

Tempo de leitura: 6 min
O gesto profético de Francisco, surpreendente e comovedor, fala mais eloquentemente do que muitos discursos.
Bernardino Frutuoso
Director
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Estamos no tempo pascal e no nosso coração e na nossa memória continua a sussurrar a Boa Notícia do Ressuscitado e a brilhar a esperança da Vida que não conhece ocaso. Dias antes da sua Paixão, num gesto inaudito, o Mestre tinha lavado os pés aos discípulos, dizendo-lhes que os seus discípulos devem ser humildes, viver a fraternidade e estar sempre dispostos a amar, perdoar e servir, pois esse é o novo mandamento do Evangelho.

O Papa Francisco, seguindo o exemplo de humildade do Mestre de Nazaré, surpreendeu-nos recentemente com um gesto revolucionário: beijou os pés dos dirigentes políticos do Sudão do Sul e pediu que o processo de paz não se detenha.

O gesto ocorreu no contexto da visita dos responsáveis religiosos e civis do mais jovem país africano ao Vaticano nos dias 10 e 11 de Abril. Tinham sido convidados por Francisco para um tempo de oração e reflexão pela paz e reconciliação naquela nação, independente desde Julho de 2011, mas mergulhada numa guerra civil desde 2013, que causou mais de 400 mil vítimas e milhões de deslocados. O presidente Salva Kiir e o ex-vice-presidente Riek Machar assinaram um acordo de paz em 2018 e vão constituir em Maio um governo de transição, mas a paz é frágil. Por isso, como referiu o Santo Padre, o retiro espiritual tinha como propósito «reflectir sobre a própria vida e sobre a missão comum» dos chefes religiosos e civis do Sudão do Sul, para todos ganharem consciência da «enorme responsabilidade pelo presente e pelo futuro» do país. No final do encontro, depois de ter pedido «como irmão» aos dirigentes do Sudão do Sul para preservar a paz, o Papa Francisco inclinou-se, inesperadamente e com visível dificuldade, diante de Salva Kiir, Riek Machar e Rebecca Nyandeng de Mabio e beijou-lhes os pés.

O gesto profético de Francisco, surpreendente e comovedor, com carácter e simbolismo profundamente evangélicos e sentido de inculturação – em muitas culturas africanas o acto de prostrar-se aos pés de alguém é sinal de agradecimento, de pedido de perdão ou de uma graça – fala, sem dúvida, mais eloquentemente do que muitos discursos. No seu papel de mediador do conflito e chefe espiritual da Igreja, o papa altera a dinâmica da diplomacia e expressa que a paz e a reconciliação só podem surgir de uma atitude de humildade, perdão e serviço recíprocos. Um apelo que o Santo Padre lança ao coração destes políticos católicos do Sudão do Sul e que interpretamos como um chamamento a colocar Deus no centro da vida e a assumir um programa de conversão que lhes permita superar as divergências pessoais, as rivalidades étnicas, a cultura da violência, do prestígio e do poder social e a assumir no quotidiano – nomeadamente na acção política – os valores e a lógica do Evangelho.

Um convite que se estende a todos os baptizados, chamados a configurar a vida com Jesus Cristo (cf. Fl 2,5; Rm 13,14; Gl 3,27), conscientes de que só desse modo podem discernir os sinais dos tempos, optar por alternativas em favor da vida e da paz – compromisso importante neste tempo de eleições para o Parlamento Europeu – e ser fermento das bem-aventuranças e do amor fraterno no mundo de hoje. 

 

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Editorial
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