Opinião
20 abril 2022

Uma «Cloud» que seca

Tempo de leitura: 6 min
A chuva de uma nuvem é bênção em tempo de seca, mas uma Cloud que contribui para o aquecimento global, seca mais do que faz chover. Sejamos sóbrios no essencial e a espiritualidade na vida digital será testemunho disso.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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Todos beneficiamos dos serviços de Cloud que guardam as nossas mensagens, documentos, filmes, fotos, e tudo o que diz respeito à nossa vida digital. O consumo energético anual para arrefecer os servidores é quase 10 vezes superior ao consumo de todos os 6,75 milhões de carros elétricos que foram vendidos em 2021 no mundo. Quando alguém partilha um conteúdo digital com a sua rede de contactos, se gerar com isso um efeito em cadeia, deveria ter consciência de estar a contribuir para uma das maiores forças ecológicas de impacto ambiental que alimenta a cultura do descarte, como é o caso das fotos.

Há 30 anos usávamos rolos para tirar fotos, pelo que não podíamos desperdiçar uma só foto. Cada imagem era cuidada e pensada para garantir a focagem e a luminosidade necessária à qualidade da foto. Uma vez paga e impressa, cada foto possuía um valor inestimável que alimentava os álbuns das famílias através das gerações. Hoje, num mundo com uma capacidade fotográfica completamente diferente, ninguém se importa muito com os milhares de fotos que tira e guarda na Cloud, ou qual o preço que isso representa em energia. A banalização das fotos espelha a falta de consciência do consumo energético que representa guardá-las para as ver onde, quando e como quisermos.

Por todo o mundo multiplicam-se as manifestações da importância de reduzir e gerir melhor o nosso consumo energético, mas pouco se reflecte sobre o impacto que têm os nossos comportamentos digitais. Pois, a Cloud é como uma caixa-preta que todos usam, mas ninguém vê ou está sensível para a quantidade de energia necessária que sustenta a sua pegada informacional. Por exemplo, depois da pandemia, a quantidade de ligações Zoom multiplicou-se exponencialmente. E num artigo de Abril de 2021, um grupo de investigadores mostrou como desligar a câmara reduz a pegada carbónica de uma ligação Zoom em 96%. O ser humano é omnívoro, mas a Cloud é uma espécie digital verdadeiramente carbonívora. E aqui surge um paradoxo ao nível da pastoral da comunicação e do desenvolvimento humano integral.

A sobriedade é uma palavra-chave na incorporação dos ideais presentes na Laudato Si’. Por outro lado, quando os cristãos falam da onda de Evangelização Nova necessária para gerar uma cultura de sentido existencial diferente na humanidade, reconhecem a importância que tem o uso dos meios digitais para comunicar a Boa Nova. Porém, arrisco-me a dizer que ninguém está preocupado com a relação entre a pegada informacional dos conteúdos que gera e partilha pela Cloud com a correspondente pegada ecológica.

Se há pessoas que não têm ainda água suficiente para as suas necessidades de higiene básica em diversas partes do mundo, é desolador saber que ver vídeos em serviços de streaming, como a Netflix, exige um consumo de 5,2 Litros/hora se for em alta-definição (HD), um valor quase 40 vezes superior à quantidade mínima de água que uma pessoa em média precisa por dia para sobreviver. Se em vez de vermos em HD víssemos com menor resolução (SD), esse consumo de água para arrefecer os servidores reduziria em 86%.

Se estiver a ler este artigo na internet, quer dizer que está a contribuir para um maior consumo de energia e, por isso, o melhor seria parar por aqui apesar de não faltar muito para chegar ao fim? Não é ecológico, então, disponibilizar vídeos formativos, ou imagens que nos mostram a realidade vivida noutras partes do mundo, contrapondo a enorme quantidade de falsidades e conspirações que poluem o mar da informação? O segredo está na sobriedade.

No Dia Mundial da Paz em 2010, Bento XVI dizia que — «é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização». E, na Laudato Si’ (LS), o papa Francisco fala da sobriedade que uma espiritualidade cristã ajuda a crescer (LS, 222) e experimentar como libertadora quando vivida livre e conscientemente (LS, 223). Francisco diz ainda não ser — «fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjectividade que determina o que é bem e o que é mal.»

Talvez seja o momento de redescobrirmos o valor da foto pensada com mais zelo e tempo, de avaliarmos mais conscientemente se vale a pena partilhar ou não determinado vídeo ou imagem, de ter cuidado em saber como responder a quem enviou um email para várias pessoas, em vez de respondermos para todos e multiplicar o excesso de emails necessários a guardar na Cloud, consumindo rios de energia.

A chuva de uma nuvem é bênção em tempo de seca, mas uma Cloud que contribui para o aquecimento global, seca mais do que faz chover. Sejamos sóbrios no essencial e a espiritualidade na vida digital será testemunho disso.

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