Opinião
30 abril 2023

Um modo de treinar a pressa de entregar-se

Tempo de leitura: 3 min
Existem quatro formas de a leitura nos ajudar a viver a pressa como acto de entrega: reflexão, perspectiva, imaginação e empatia.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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(© 123RF)

 

Desconheço o ambiente onde vive, mas se for numa cidade, não sente que tudo e todos à sua volta estão demasiado apressados? É verdade que no mote da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa – «Maria levantou-se e partiu apressadamente» (Lc 1, 39) – a pressa faz parte da experiência de Maria. Mas, parece-me que Maria tem uma natureza diferente da pressa sentida nos meios urbanos. A pressa de Maria era uma resposta a um acto de entrega. Que resposta dar à pressa urbana?

A pressa vivida pelas pessoas numa cidade deve-se a quê? Pode ser por terem muitas coisas para fazer e querer atender a tudo com eficiência. Pode ser porque houve trabalhos que demoraram mais tempo do que se previa e o atraso conduz à pressa para chegar ao próximo compromisso. Em última instância, a pressa revela-se uma consequência da experiência que fazemos do tempo e do valor que damos (pouco, talvez) a actividades que induzem um movimento menos acelerado como a escrita ou a leitura.

Numa recente entrevista ao The New York Times, o escritor de divulgação científica Alan Lightman mistura o efeito da escrita com a leitura ao responder a uma pergunta sobre a sua experiência ideal de leitura: «Gosto de estar num espaço de quietude e serenidade, sem telefones a tocar ou outras distracções. Desde que o lugar seja de quietude, eu posso estar em qualquer lugar porque depois de alguns minutos desapareci no reino mágico onde perdemos a consciência de quem somos, onde estamos, os nossos corpos, até mesmo do tempo. É um espaço puramente criativo. [...] Se és o leitor, nós [escritores] estamos a levar-te as nossas experiências de vida para o cenário e a usar essas experiências para ajudar a criá-lo. Os bons livros não estão completos até que sejam lidos por um leitor, e cada leitor completa o livro de um modo diferente.»

A leitura não acompanha outro ritmo senão o nosso. Por vezes lemos mais rápido, mas é quando desaceleramos que podemos saborear as palavras dispostas em jogos rítmicos que nos impulsionam, por vezes, a ler em voz alta só para apreciar a fonética das sílabas. Existem quatro formas de a leitura nos ajudar a viver a pressa como acto de entrega. A primeira é a reflexão que remete os nossos pensamentos para as coisas mais profundas em busca de um sentido e significa que nos ajuda a discernir a velocidade certa a seguir. A segunda forma é a perspectiva diferente que a leitura pode oferecer ao modo como, habitualmente, vemos as coisas. A pressa mundana gera complicação, mas a pressa por acto de entrega reconhece a complexidade de cada situação e aprende a discernir como entregar-se de coração. A terceira é a imaginação. Quando lemos, temos a oportunidade de viajar por mundos imaginários que nos despertam para o sonho num mundo cuja pressa nos impede de sonhar. Por fim, a quarta forma de a leitura nos levar a viver a pressa como entrega é a empatia, o fazer-se um com os outros através da aprendizagem que fazemos com o ritmo das palavras. Também os gestos concretos de doação aos outros geram ritmos empáticos que transformarão o mundo num lugar melhor.  

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