Música
25 abril 2021

Música

Tempo de leitura: 3 min
Três discos que nos refazem a vida. Como que meditações pascais.
António Marujo
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Na canção «Hand of God» (“Mão de Deus”) do disco Carnage (“Carnificina”), Nick Cave canta: «Há algumas pessoas a tentar descobrir quem / Há algumas pessoas a tentar descobrir porquê / Há algumas pessoas que não estão a tentar encontrar nada / Mas esse reino no céu, no céu... Mão de Deus vinda do céu…» A resposta vem depois, em «Lavender Fields» (“Campos de alfazema”), canto melodioso e quase litúrgico: «Não perguntamos quem/ Não perguntamos porquê / Há um reino no céu / Caminhamos e caminhamos…»

Carnage, escrito com o seu companheiro Warren Ellis, é o último acto de uma trilogia iniciada em 2020, à conta da pandemia, com os discos Idiot Prayer (“Oração idiota”) e L.I.T.A.N.I.E.S. Neste caso, Cave escreveu as palavras para uma paixão de Cristo composta por Nicholas Lens – e diria a propósito: «Durante toda a minha vida escrevi litanias…»

 

Disco1

 

Entre drama e meditação, os três discos são, embora com diferentes movimentos e ritmos, um mesmo refrão ou litania – ou jaculatória – que se recria. Como em muitos temas ao longo da sua carreira, sobretudo nos últimos discos, revelam de novo um criador que toma as buscas humanas para inquirir o mistério da vida através da música.

Porque é da vida que se trata. Desde que lhe morreu um filho, em 2016, o australiano Nick Cave assume o debate interior entre a gravidade e a graça, na expressão de Simone Weil. O tom pode parecer, à primeira, demasiado melancólico, mas isso é só porque a voz se vai buscar ao mais interior de si mesmo. E à medida que a escuta, sonda-se também cada vez mais a intensidade que atravessa esta música – e nos atravessa a todos.

Skeleton Tree e Ghosteen, os discos editados a seguir à tragédia familiar, já escavavam até ao fundo o universo da “noite” de S. João da Cruz, entre a fé, a dúvida e a esperança, herdeiro da ideia da redenção. E que já se expressava em «Foi na Cruz» (cantado em português, a partir de um hino protestante ouvido por Cave no Brasil), do disco The Good Son (“O Bom Filho”, 1990).

 

Disco2

 

L.I.T.A.N.I.E.S começa com a “Litania da ausência divina”, sussurrada com um “Onde estás?” e termina com a “Litania da presença divina” (“Vejo-te, estás a surgir...”). Com Idiot Prayer e Carnage, frutos da mesma gravidez pandémica, esses movimentos consolidam-se em diferentes expressões e movimentos musicais. Como na “Litania do encontro”: “Fui refeito, ó Senhor / Eu já não era eu/ Eu era o mundo / O mundo inteiro.”

Três discos que nos refazem a vida. Como que meditações pascais.

 

Disco3_1

 

Edição: https://www.nickcave.com/music/

Todos os discos estão disponíveis nas plataformas digitais

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