Igreja
14 outubro 2021

Tráfico de pessoas, a outra pandemia

Tempo de leitura: 9 min
Benjamine Kimala é uma missionária comboniana originária do Chade e vive em Lima, capital do Peru. Estudou Trabalho Social e colabora com outras congregações religiosas no combate ao tráfico de pessoas, que o Papa Francisco definiu como uma escravidão moderna.
Benjamine Kimala Nanga
Missionária comboniana
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O meu trabalho principal como missionária é colaborar com a Red Kawsay da Conferência de Religiosos do Peru, uma rede de vida consagrada que começou em 2010 e cujo principal objectivo é lutar contra o tráfico e a exploração de seres humanos. «Kawsay» é um termo quéchua que significa «viver». A Palavra de Deus que inspira o nosso compromisso cristão é o texto evangélico de João (10,10), onde Jesus diz: «Vim para que eles possam ter vida, e vida em abundância.» A rede é constituída por mais de 38 congregações religiosas e alguns padres diocesanos.

Eu e três irmãs de outras congregações acompanhamos um grupo de mulheres e menores de Riveras de Cajamarquilla, um bairro do município de San Juan de Lurigancho, na periferia de Lima, que sofreu muito por causa dos deslizamentos de terra. O objectivo do nosso trabalho é a prevenção, sensibilização e formação em relação ao tráfico de pessoas. Fazemo-lo por meio de diversos cursos de capacitação, que visam fortalecer as mulheres, nomeadamente reforçando a auto-estima das menores e promovendo uma cultura de prevenção e cuidado contra os abusos sexuais.

A minha principal actividade é realizar cursos de formação para professores, administradores, gestores, assistentes, pessoal de apoio, autoridades (polícia, fiscais e pessoal de centros de admissão de menores), catequistas e pais. Fiz um curso de formação ministrado pelo Ministério do Interior do Peru; isso permitiu-me conhecer as leis e falar com fundamento, e não apenas com a experiência.

O sofrimento das vítimas

Conheci diferentes realidades no Peru e contactei muitos jovens que partilharam a sua situação pessoal: falta de trabalho, dificuldade em estudar, situação familiar complicada, etc. São essas situações que facilitam o tráfico humano, um problema de dimensões cada vez maiores. Esta forma de escravidão moderna realiza-se com diferentes propósitos e afecta, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis. Em muitos ambientes, a maioria das vítimas são jovens e, em particular, raparigas com menos de 18 anos.

 

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A irmã Benjamine Kimala fala numa escola de Lima do problema do tráfico de seres humanos

 

Um dos casos que mais me impressionou foi o de uma rapariga de 17 anos, originária de uma aldeia da selva peruana. No final da escola secundária foi para a cidade para se preparar para o exame de acesso à universidade. Não passou, pois tinha um nível de estudos mais baixo do que os estudantes da cidade. Para permanecer na cidade, as necessidades foram-se acumulando: estudo, renda do quarto, alimentação... Sem querer, caiu na exploração sexual.

Foi contratada para trabalhar num cibercafé, um local que fornecia serviços de Internet. Um dia, quando lhe liguei, ela disse-me calmamente: «Irmã, podes ligar-me mais tarde?» Ao ouvi-la responder dessa forma, pensei que alguma coisa não estava bem. Dias depois, liguei-lhe novamente. Ela contou-me que já não trabalhava no cibercafé porque tinha sido obrigada a assinar um contrato por um mês para prestar serviços sexuais a homens. Ouvi-a sem a julgar. Com o problema acrescido da pandemia, não pode continuar e regressou à sua aldeia.

As distâncias são um dos principais problemas que enfrentamos, pois muitos dos nossos destinatários (jovens e professores) vivem em áreas muito remotas e de difícil acesso, o que dificulta a continuidade. Outra dificuldade é que, em muitos casos, as pessoas não sabem bem o que significa a expressão «tráfico humano». Muitos ficam confusos e pensam que tem que ver com «tratar bem as pessoas».

Ignoram que o tráfico de seres humanos é uma prática que viola os direitos humanos fundamentais. Um crime que não distingue fronteiras e que tem cada vez mais vítimas no Peru: há menores e adultos que são raptados, coagidos, detidos e reduzidos a vários tipos de exploração sexual; forçados a mendigar nas ruas, onde vivem em condições sub-humanas; ou sofrem com a remoção ilegal dos seus órgãos. Este é um grande problema e tem muitas facetas. Os mais afectados são as crianças e adolescentes.

Tráfico de pessoas em tempo de pandemia

Por causa da pandemia, este ano a situação é muito difícil também para as mulheres, por isso ajudamo-las com produtos alimentares e de higiene básicos, e aproveitamos a oportunidade para sensibilizar e protegê-las da covid-19 e contra o tráfico de seres humanos. Noutras paróquias criámos as chamadas «ollas comunes» [panelas comuns]: compramos os alimentos e as mães, organizadas em grupos, revezam-se para cozinhar e distribuir a comida de acordo com o número de pessoas em cada família.

 

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A irmã Benjamine participa numa campanha de sensibilização sobre o tráfico de seres humanos num bairro de Lima

 

Embora as fronteiras estivessem fechadas devido à covid-19, o tráfico de seres humanos aumentou. Os traficantes usam outras formas para continuar a atrair e enganar potenciais vítimas, principalmente através da Internet e das redes sociais. Basta pensar em qualquer jovem que perdeu o emprego durante a pandemia e ainda está desempregado, e se alguém lhe oferecer uma oportunidade de emprego no estrangeiro, dizendo-lhe: «Quando a pandemia acabar e as fronteiras abrirem, convido-te para ires a esse país... ou podes ir para os Estados Unidos ou para a Europa, onde podes trabalhar e estudar ao mesmo tempo.» Aquele jovem vai acreditar, pensando que essa oferta é verdadeira.

Por impossibilidade de nos deslocarmos no país devido à pandemia, oferecemos cursos de formação para jovens e professores por videoconferência. Informamos sobre as estratégias que os traficantes usam para convencer as pessoas, alertamos para o perigo que é dar informação pessoal ao primeiro que encontram e de aceitar desconhecidos nas redes sociais. Que investiguem e descubram primeiro se será verdade quando recebem propostas de trabalho. Na ausência de aulas presenciais, difundimos vídeos em que falamos de tráfico, das suas causas e consequências físicas e psicológicas com o objectivo de prevenir este flagelo.

Graças ao nosso trabalho, temos visto resultados e as pessoas começaram a reportar mais frequentemente o tráfico. Não há muito tempo, uma jovem disse-me: «Irmã, ontem à noite vi uma oferta de emprego na Internet. E como nos tinhas falado disto, perguntei-lhe se era verdade. Depois de dois dias, a informação tinha desaparecido. Era um anúncio falso.»

Nestes anos também aprendi a relativizar muitas questões específicas da minha cultura. No meu país, o Chade, falar de sexo é tabu, mas aqui tenho de falar claramente com jovens que chamam as coisas pelo seu nome, sem complexos, mas com respeito. No início não foi fácil. Também vejo que é necessário adaptar a nossa linguagem ao contexto onde trabalhamos.

Aqui a vida é muito simples, somos muito próximas das pessoas e trabalhamos com elas. É uma população vulnerável que precisa de se envolver na procura de soluções, pois só assim podem avançar. Quando termino um curso com jovens, pergunto-lhes: «O que farias? Que compromisso assumes para ser um agente multiplicador desta formação?» Às vezes dizem que querem fazer alguma coisa, mas não sabem, por isso digo-lhes que ponham as ideias na mesa e falem sobre o tema. Muitos grupos ligam-me para me falar das actividades que estão a fazer. Tudo isso me encoraja e ajuda-me a continuar a trabalhar, porque esse era o sonho de São Daniel Comboni: formar líderes que gerem a mudança, formar a Igreja local.  

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