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09 dezembro 2019

Cristo vive?! Onde? Não o vejo!

Tempo de leitura: 9 min
Cristo vive e caminha ao nosso lado. Ele quer-nos verdadeiramente felizes e realizados. A nossa vocação é, precisamente, um reflexo concreto de que Cristo vivo nos quer vivos.
Susana Vilas Boas
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Muitas vezes, quando falamos de vocação, ficamos presos a uma imagem ilusória que nos remete, ora para um sonho fantástico e longínquo, ora para a ideia de uma «voz vinda do além» que nos chama a seguir determinado caminho. Numa luta desesperada para sair deste imbróglio que não nos leva a lado nenhum, olhamos para tudo quanto ritma a nossa vida cristã. Mas aí… é sempre a mesma coisa! A missa começa e desenvolve-se, até ao fim, sempre da mesma maneira. Os sacramentos seguem sempre o mesmo rito. O papa parece que diz sempre a mesma coisa. A Bíblia… não traz nenhuma novidade – já conhecemos a história de cor! Nada parece ajudar-nos. Que fazer? Gritam inúmeras vozes a anunciar que Cristo está vivo, mas, a verdade é que não O vemos, não O escutamos a segredar-nos algo, conhecemos a história: Jesus morreu e ressuscitou, mas não vemos de que modo “está vivo” nem o que é que isso contribuiu para a nossa felicidade.

Não desesperemos! Quando olhamos a nossa vida cristã desta forma, significa que estamos doentes! Significa que estamos a ficar cegos! De facto, é o mesmo que dizer que todos os nossos dias são iguais: levantamo-nos, respiramos, comemos, voltamos a deitar-nos. Estou a ser simplista nesta visão? Claro que sim! Mas o mesmo acontece quando a nossa vida cristã é reduzida ao ritualismo, a frases feitas e à ânsia de uma materialidade capaz de “ser Deus”!

Quando entramos na adolescência, pelo menos as meninas, sonhamos com o “príncipe encantado”, montado num cavalo branco, que vem ao nosso encontro e nos faz feliz para sempre. Uma visão retirada dos contos de fada que nos vão contando e impingindo ora através de histórias ora através dos desenhos animados da televisão. Contudo, sabemos que esta visão é fictícia, ilusória e fora da realidade. Queremos, efectivamente, a felicidade, mas sabemos que “o príncipe encantado” será sempre alguém com carácter, que nos respeite, que nos ame – alguém real!

A vida cristã e, particularmente a pessoa de Jesus Cristo, tem também de ser real na nossa vida, só assim a nossa vida se abre à novidade das Escrituras, dos ritos dos sacramentos e da forma como a Igreja de hoje fala desta incarnação de Cristo no aqui e agora dos nossos tempos. Que originalidade isto nos traz? Apenas a alegria da certeza de que «Aquele que nos enche com a sua graça, Aquele que nos liberta, Aquele que nos transforma, Aquele que nos cura e consola é Alguém que vive» (Cristo Vive, n.º 124). Alguém cuja vida se manifesta na nossa própria existência, muito para lá da materialidade que os nossos olhos carnais conseguem enxergar.

Fiz asneira... e agora?

A ânsia de ver, de ouvir e de ter certezas sobre tudo reduz a nossa vida ao vazio, uma vez que não conseguimos fazer nada fora da nossa biologia. Pensemos no Amor (amor aos pais, aos irmãos, aos amigos, etc.). É algo de essencial para nós, faz parte da nossa existência, é absolutamente real, mas... não o vemos! Apenas somos capazes de o sentir, de ver as suas manifestações e de o manifestar. Afirmar que Cristo está vivo é exactamente o mesmo: não O vemos, mas, se nos afirmamos cristãos, nada é mais real, essencial e verdadeiro na nossa vida – nada se manifesta de modo mais sublime na nossa existência!

No entanto, se assim é, porque nos sentimos tantas vezes sozinhos? Porque nos sentimos tão à deriva? Porque acabamos por fazer tudo o que é contrário à fé que professamos? É difícil “ser humano”! Como dizia S. Paulo, parece que só fazemos o mal que não queremos e deixamos de fazer o bem que queremos (Rm 7,19)! Sem nos darmos conta, vamos tecendo uma teia à nossa volta e ficamos encurralados/sufocados nela. Depois disso, que fazer? Como voltar para Deus? Como voltar àquilo que de facto somos e àquilo que desejamos ser? Depois de tanta asneira, como ousar olhar a vocação que pensamos ser para nós de modo a não nos sentirmos indignos de tamanho dom?

Há que percorrer o mesmo caminho de S. Paulo: apesar do pecado, apesar da negação de Deus, apesar de tantas traições, em Cristo não há condenação! Como recorda e nos diz o Papa Francisco, “nunca esqueças que Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda” (exortação apostólica Cristo Vive, n.º 119).

É o Amor quem tem a última palavra, nunca os nossos erros e os nossos desvios do caminho! A nossa vida não é linear (apenas vinculada ao nascer, viver e morrer), antes, ela, para o ser, assume sempre um carácter dinâmico e profundamente humano – um carácter no qual se discerne e se vive a vocação e, consequentemente, a manifestação de Cristo vivo na nossa vida, na nossa existência e no nosso quotidiano (por mais adversas que sejam as situações pelas quais passamos).

Cristo vive... e deixa rasto por onde passa

Por vezes só conseguimos ver escuridão e, com o tempo, deixamos mesmo de conseguir ver a luz. É assim se pensamos biologicamente (se passamos bastante tempo às escuras, depois nem conseguimos abrir os olhos quando há luz) e é assim quando pensamos na nossa vida e relação com Aquele que é a Luz.

Os momentos de luta e de descoberta vocacional envolvem-se em dúvidas, incertezas e medos. Todavia, o maior desafio não está em responder às dúvidas, dar certeza às incertezas ou em vencer os medos. Está, antes, no desafio de nos deixarmos guiar por este rasto de Luz que permanece vivo – um rasto de Luz que se manifesta através daqueles que melhor estão à altura de nos acompanharem neste caminho de discernimento. Muitas vezes assumimos que a escuridão “é a nossa única saída”. Resignámo-nos a ela e deixámo-nos confinar ao envelhecimento da nossa esperança, incapazes de lutar e de olhar para a vida que vivemos segundo uma perspectiva luminosa – uma perspectiva divina – única capaz de dissipar a escuridão que insiste em nos cercar e de nos abrir as portas à vida que sonhamos viver.

Cristo vive e quer-te vivo!

As pegadas de Cristo são deixadas no nosso caminho. Ele caminha ao nosso lado e mantém-nos na Luz, para perseverarmos no caminho. Ele quer-nos verdadeiramente felizes e realizados! Ele sonhou, e luta connosco, para que vivamos uma vida em abundância (Jo 10,10).

Longe estão os tempos em que pensar a vocação era sinónimo de “negar-se” e “vestir a pele de Cristo”. A vocação, porque vem de Deus e é de Deus, não nos mutila, não nos torna seres virtuais desenraizados da nossa humanidade e do mundo em que vivemos. Antes, a vocação é reflexo concreto de que Cristo vivo quer-nos vivos! Sem uma realização plena do que somos, vivemos como zombies: apáticos perante a realidade, conduzidos por uma “existência morta” na qual nada faz sentido... vivemos sem viver e negamos a vida de Cristo – uma vida capaz de vencer a própria morte e de nos fazer triunfar aconteça o que acontecer. De facto, «se Ele vive, isso é uma garantia de que o bem pode triunfar na nossa vida e de que as nossas fadigas servirão para qualquer coisa. Então podemos deixar de nos lamentar e podemos olhar em frente, porque com Ele é possível sempre olhar em frente» (Cristo Vive, n.º 127).

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