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05 abril 2020

O preço da felicidade

Tempo de leitura: 9 min
O preço da felicidade e de toda a vocação autêntica é acreditar na felicidade a partir do que somos verdadeiramente e da fé que nos habita e partilhamos com os que nos acompanham.
Susana Vilas Boas
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O amor é a fonte da nossa existência: nele somos criados e nele queremos crescer e existir. Não conseguimos, por isso mesmo, pensar a felicidade sem amor. Uma coisa parece estar ligada directamente à outra, sendo inconcebível a ideia de separá-las. No entanto, a descoberta e vivência do amor nem sempre é fácil. Basta vermos, por exemplo, o amor inquestionável que temos aos nossos pais (e eles a nós) e, ainda assim, quantas vezes os fazemos sofrer, quantas vezes eles nos fazem sofrer a nós! Alerta o Papa Francisco para o facto de o amor, como a felicidade, não ser algo estático. Ao contrário, o amor é dinâmico – obriga a uma acção –, não está estagnado, e, consequentemente, «o amor que se dá e age, muitas vezes erra. Aquele que actua, aquele que arrisca, frequentemente comete erros» (Cristo Vive, n.º 198).

O mesmo se passa com o discernimento/ /descoberta vocacional. A vocação que nos realiza plenamente (aquela única que nos pode fazer felizes) também não está estagnada e, por isso, o caminho vocacional corre o risco de ter tropeços, de ter alguns erros de percurso, mas isso não significa que devamos desanimar. Ao contrário, a vida tem de ser vivida e a felicidade não pode ser evitada ou bloqueada pelo medo de errar! A vocação, como o amor, é sempre fecunda. Ela é sempre geradora de vida! Assim, há que ousar vivê-la, custe o que custar.

Os pés bem assentes na terra

O preço da felicidade começa a ser pago quando nos obrigamos a pensar a vocação (a própria felicidade) com os pés assentes na terra. Andar atrás de borboletas – a flutuar em ilusões, em desejos virtuais de uma felicidade sem esforço – não leva a lugar nenhum (é apenas perda de tempo!). É preciso ter a maturidade de pensar uma felicidade concretizável e verdadeiramente fecunda, além de uma vida de felicidade aparente que, simplesmente, não nos realiza.

O papa faz uma analogia bonita sobre as árvores, para explicar a importância do ter os pés na terra, quando diz: «Já me aconteceu ver árvores jovens, belas, que elevavam os seus ramos sempre mais alto para o céu; pareciam uma canção de esperança. Mais tarde, depois de uma tempestade, encontrei-as caídas, sem vida. Estenderam os seus ramos sem se enraizar bem na terra e, por ter poucas raízes, sucumbiram aos assaltos da Natureza» (Cristo Vive, n.º 179). A felicidade que procuramos – através da vivência vocacional – não é uma felicidade passageira, mas durável; não é uma felicidade que não tem tempestades, mas uma que permanece apesar das circunstâncias adversas que a vida possa trazer.

Muitas vezes não é fácil sonharmos o futuro com esta dimensão terra-a-terra. Por isso mesmo, temos de contar com as pessoas à nossa volta e, particularmente, com aquelas que nos acompanham ajudando-nos a discernir e a dar passos concretos na nossa vocação. Frequentemente, quando pensamos o futuro, somos tentados a ignorar a experiência de outros – sobretudo dos mais velhos – ora porque consideramos que eles nada compreendem sobre a nossa vida, ora porque o nosso orgulho nos faz pensar que somos auto-suficientes. Quão errados estamos! De facto, toda a nossa vida é fruto de uma herança deixada pelos mais velhos (o nosso falar, a nossa forma de comer, de vestir, etc.). Esta herança do passado é terra fértil onde a nossa vida – a semente da vocação que queremos que germine e dê flor e fruto – pode realizar-se plenamente. Negar o conselho dos mais velhos, a ajuda daqueles que nos acompanham, é tirar as raízes da terra e abrir portas a uma vida que se faz de planos que nunca se realizarão – planos e sonhos sempre adiados para mais tarde (quando surgirem outras condições de vida). Contudo, a felicidade não implica apenas o ter os pés bem assentes na terra – isso poderia até levar a enterrar a cabeça na areia. A felicidade implica ir sempre para lá da linha do horizonte, isto é, implica ir sempre além daquilo que podemos pensar ou até imaginar (Ef 3,20).

Os olhos postos no céu

Caminhar com os pés assentes na terra não significa viver como uma Maria vai com as outras. Antes, significa, muitas vezes, andar contracorrente. Nos nossos dias, inúmeras são as vozes que vendem uma felicidade fácil: ligada ao culto do sempre jovem, ligada à aparência de felicidade – aos caminhos da fama, dos flashes e dos aplausos. Neste caso, a felicidade é uma questão de dinheiro (comprar os produtos certos) e uma questão de sorte (estar no sítio certo à hora certa – para dar nas vistas), mas é também uma questão passageira – ela dura apenas até ao momento em que aparecer alguém mais jovem, com mais dinheiro, com sorte... Pouco a pouco, aquele que deveria ser o nosso projecto de vida e o nosso caminho de felicidade torna-se uma corrente de escravatura da aparência, em que deixamos de ser quem somos, para fingirmos ser aquilo que os outros desejam que sejamos.

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Viver a vocação é ousar percorrer «outro caminho, feito de liberdade, entusiasmo, criatividade, horizontes novos, mas cultivando ao mesmo tempo as raízes que o nutrem e sustentam» (Cristo Vive, n.º 184). É viver o que se é e o que se deseja sem, na certeza de que não se está sozinho, por maiores que possam ser as dificuldades e as circunstâncias adversas. Apenas uma maior coerência de vida poderá conduzir a uma felicidade consistente – à medida dos nossos sonhos – e “sem prazo de validade” predefinido. Com os olhos postos no céu, o impossível torna-se possível – não porque corremos atrás de ilusões, mas porque é a fé que nos move, uma fé consistente com a nossa humanidade, com as nossas capacidades, mas também com as nossas limitações e fraquezas.

Uma felicidade fecunda e com profundidade

O preço da felicidade é acreditar na felicidade, a partir do que somos verdadeiramente e da fé que nos habita e partilhamos com os que nos acompanham. «As raízes não são âncoras que nos prendem a outros tempos, impedindo de nos encarnarmos no mundo actual para fazer nascer uma realidade nova. Pelo contrário, são um ponto de arraigamento que nos permite crescer e responder aos novos desafios» (Cristo Vive, n.º 200). Elas não nos confinam a uma vivência puramente terrena, antes conduzem a um frutificar que só é possível em Deus. Que árvore poderia subsistir sem raízes? Nenhuma! Por outro lado, que árvore poderia florir e dar fruto se Deus não a fizesse frutificar? Estas são as dimensões inseparáveis da felicidade e de toda a vocação autêntica: a dimensão humana – que não nega o que somos e o passado que herdamos (que nos foi/é transmitido pelas pessoas mais velhas) –, e a dimensão divina – aquela que nos põe sempre em relação e verdadeira aliança com o Senhor da Felicidade, o Senhor que nos chama e acompanha na nossa realização vocacional.

Uma felicidade que tem em conta este dinamismo que lhe é próprio – um dinamismo constitutivo da nossa humanidade – é sempre fecunda, profunda e duradoura. Esta não é corrompida nem pelo medo, nem pelas circunstâncias, nem pelo passar dos anos, ela existe e cresce todos os dias, apesar das dificuldades, dos erros e de todos os contratempos que a vida possa apresentar.  

 

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