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04 maio 2020

A missionariedade vocacional

Tempo de leitura: 10 min
Na vocação, a dimensão missionária está sempre presente. Somos missão e, por isso, pomo-nos ao serviço de todos os que amamos, dos que nos rodeiam e até daqueles que vivem além-fronteiras.
Susana Vilas Boas
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Certo dia, enquanto passeava pela cidade, vi numa parede pintada a seguinte frase: «As árvores não comem os próprios frutos, os rios não bebem as próprias águas. A riqueza dos dons é sempre para benefício dos outros.» Desconheço o autor do grafito e o autor da frase. Contudo, esta tem sido usada variadíssimas vezes pelo Papa Francisco. Coincidência ou não, esta frase – seja ela originariamente pensada num sentido cristão ou não – remete-me para uma reflexão mais profunda sobre a vocação: desde o início do discernimento vocacional até à sua vivência quotidiana.

Muitas vezes, somos tentados a olhar para a nossa vida, presente e futura, apenas numa perspectiva pessoal, quase independente do mundo à nossa volta, num maranhado de frases/perguntas onde o “eu” se encontra sempre no centro: «O que eu quero fazer com a minha vida?»; «Que futuro é que eu quero para mim?»; «Eu quero ser feliz!»; «Eu quero realizar-me». Nada há de errado no desejo pessoal de felicidade e auto-realização, o problema surge quando, pouco a pouco, à força de repetirmos estas frases e de as pensarmos/sentirmos tão centradas no “eu”, começamos a pensar a vocação e a vida de um ponto de vista egoísta, como se fosse possível viver plenamente sem que isso constitua, por um lado, um esforço pessoal e, por outro lado, um dom para os outros. Ao querermos ser os primeiros beneficiários dos dons da nossa vocação, partimos, mesmo sem nos darmos conta, para o discernimento vocacional já tendo em vista vocações que nos possam “satisfazer”, numa perspectiva autocentrada que nos faz olhar a vocação como “uma lotaria” que vamos ganhar, e não como um dom que recebido nos coloca ao serviço em favor da humanidade que nos rodeia.

A missionariedade como distintivo cristão

O Papa Francisco alerta para esta problemática, não deixando, porém, de advertir que a vivência vocacional também não pode ser entendida como um estandarte que elevamos para que todos vejam e usufruam. Ela – enquanto vivência do Evangelho – é como uma brisa suave que, de um modo discreto, acaricia, refresca, acalma, à sua passagem. A sua acção não é nem exibida nem autocentrada, é discreta, mas actuante. Por isso mesmo, o papa recorda as palavras de Santo Alberto Hurtado, que afirmava que «ser apóstolo não significa usar um distintivo na lapela do casaco; não significa falar da verdade, mas vivê-la, encarnar-se nela. [...] O Evangelho [...], mais do que uma lição, é um exemplo. A mensagem transformada em vida vivida» (Cristo Vive, n.º 175).

Como no grafito que encontrei, em que os dons implicam esforço, generosidade e renúncia (a árvore tem de ser fecunda, tem de dar fruto e tem de renunciar a eles para que outros deles beneficiem, se fortaleçam e, por sua vez, também frutifiquem para outros), na vocação a dimensão missionária está sempre presente. Aliás, se pensarmos bem, como seria uma vida plena se fôssemos completamente isolados do mundo que nos rodeia? Que felicidade, se só vivêssemos para nós mesmos? Todos temos experiências de boas notícias – um bom resultado num exame, a entrada para a faculdade, uma oferta ou uma boa apreciação de alguém que não contávamos, etc. – e, o que desejamos fazer – o que fazemos, de facto – quando isto acontece? Ficamos a deliciar-nos sozinhos com o momento? Não! Telefonamos logo a alguém a contar o sucedido. Muitas vezes, nem aguentamos conter a alegria até chegar presencialmente junto dos nossos amigos ou familiares para partilhar a alegria que estamos a sentir. Quão triste seria não ter ninguém com quem o fazer! Quão redutor da nossa felicidade seria constatar a nossa solidão nestes momentos! Com a vocação acontece o mesmo. Ela é algo maior do que nós e, à medida que vamos vivendo a sua realização (desde o próprio discernimento), ela vai crescendo e “saindo-nos do peito”, numa alegria e num desafio maior do que nós mesmos, tornando-se aí, necessariamente, missionária e dom para os outros. Ela deixa de ser prémio, para converter-se em alegre serviço – dom verdadeiro – para todos os que amamos, para os que nos rodeiam e até para aqueles que nem conhecemos pessoalmente.

A vocação para lá do próprio umbigo

O ideal de uma felicidade fácil que, muitas vezes, a sociedade, os meios de comunicação social e mesmo o nosso círculo de amigos, parecem querer “vender”, está longe de ser possível. A virtualização da felicidade leva-nos a um afunilamento e redução drástica da existência e do próprio sentido da vida. Se pensarmos bem, por exemplo, nos grandes nomes da História, naqueles que são para nós exemplos de vida, verificamos que estas são pessoas que abdicaram de muito, renunciaram a muito e só na medida em que viveram em coerência com a sua vocação e na dádiva dos dons que foram frutificando nas suas vidas, é que marcaram a diferença, é que se realizaram e, consequentemente, é que transformaram o mundo de maneira que, até hoje, o mundo não deixa de recordar os seus nomes. Claro que não temos de “ficar todos para a História”, mas podemos negar-nos a fazer parte dela?

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Certamente que pessoas como Daniel Comboni, ou o próprio Jesus Cristo, continuam a marcar-nos, mas terão sido as suas vidas fáceis ou vividas de um modo autocentrado? Sabemos bem que não! Quanta renúncia e a quantos sacrifícios foram sujeitos. Todavia, se pensamos em vidas vividas em plenitude, estes são nomes que nos vêm logo à mente. Quando pensamos em vidas coerentes e realizadas, é neles que também pensamos. Consequentemente, e apesar das tantas provações, dificuldades e obstáculos que tiveram de travar, estas foram vidas felizes. Não porque foram vividas no meio de gargalhadas e de muita riqueza financeira, mas porque cada lágrima, cada dor, cada momento de sofrimento foi vivido por um bem maior (não para si mesmo, mas em favor de outros) e, no fim de tudo (porque Deus nunca abandona aqueles que O amam), todos estes momentos dolorosos converteram-se em triunfo, em alegria e em vida verdadeira. Não seria isso que todos desejamos? Não será, precisamente, uma vida que, apesar das dificuldades, seja fecunda, sinal de esperança e geradora de uma alegria maior, aquela que todos ansiamos?

O desafio da vocação, enquanto impulso missionário

A vida não se compraz com facilitismos nem com o adiamento da existência. Ela acontece a cada momento e não podemos fechar os olhos, não podemos enterrar a cabeça na areia como a avestruz, temos de ousar vivê-la apesar dos nossos medos e anseios mais egoístas. Há quem fale do “amanhã dos jovens de hoje”. Quando se trata de encarar a vida e a vocação de um ponto de vista cristão, esta frase não faz sentido. O hoje é o tempo de Deus, o tempo em que Ele age e nos acompanha no nosso agir. Por isso mesmo, o Papa Francisco não se cansa de nos alertar e exortar a uma acção no aqui e agora da nossa vida: «Não se pode esperar que a missão seja fácil e cómoda. [...] Amigos, não espereis pelo dia de amanhã para colaborar na transformação do mundo com a vossa energia, audácia e criatividade. A vossa vida não é “entretanto”; vós sois o agora de Deus, que vos quer fecundos» (Cristo Vive, n.º 178). 

 

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