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30 maio 2020

Sem travões, sem vergonha

Tempo de leitura: 10 min
No Brasil, à aliança entre Bolsonaro, os militares, os fazendeiros e os evangélicos, junta-se agora a ameaça da covid-19. Uma mistura mortal, que está a devastar o meio ambiente e a pôr em perigo a existência dos povos indígenas.
Paolo Moiola
Jornalista
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Na conjuntura actual, é difícil dizer que coisa está a causar mais dano aos povos indígenas e à Amazónia: se as políticas implementadas pelo Governo de Jair Messias Bolsonaro ou o novo coronavírus. Certamente, a pandemia pode propagar-se e matar muitas pessoas por causa das medidas governamentais. Durante este ano de 2020, Bolsonaro, o Trump brasileiro – como é justamente apelidado – não mudou por um milímetro as suas políticas anti-indígenas e anti-ambientalistas, posições em que conta sempre com o forte apoio de militares, fazendeiros e evangélicos, todos bem representados no Governo.

Desde o início do mandato que Bolsonaro repetiu que, com ele, não haveria mais demarcações de terras indígenas. Todavia, o Presidente não se limitou a bloquear este processo, que está consignado no artigo 231.º da Constituição brasileira de 1988. Permitiu e até incentivou uma série de mecanismos que visam a apropriação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. E, para o conseguir, recorre a diferentes estratégias. Por um lado, não trava as invasões (como as dos garimpeiros na terra dos Ianomâmis). Por outro lado, tenta legalizar essas terras invadidas através do seu reconhecimento formal e, consequentemente, apoia a prática fraudulenta conhecida como «grilagem de terras» (apropriação indevida de terras por meio de documentos falsos). Invasões que, durante este período, facilitaram, entre outras coisas, a propagação do novo coronavírus entre as populações mais vulneráveis – dado que tanto a ciência como a História confirmam (os povos indígenas foram dizimados em grande número pelas patologias que portavam os ocidentais).

 

brasil4O cacique Messías Kokama, considerado o principal chefe indígena da cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, morreu vítima de covid-19. A sua comunidade despediu-se no passado 15 de Maio, sem poder prestar homenagem através dos seus rituais tradicionais. (Foto: © LUSA)

Aniquilação da floresta e dos povos indígenas

Bolsonaro tem esse objectivo na agenda, mas também os seus ministros. Abrahan Weintraub, Ministro da Educação, disse: «Odeio o termo “povos indígenas”» (22 de Abril de 2020). Por seu lado, Ricardo Sales, ministro do Ambiente, explicou que é necessário aproveitar a pandemia e, portanto, a desatenção dos órgãos de comunicação social a esses assuntos, para alterar as leis ambientais e fazê-las menos restritivas. Certamente, as poderosas organizações do agronegócio aplaudiram o discurso.

A estratégia é tão descarada que até um jornal conservador e moderado como a Folha de S. Paulo escreveu, no seu editorial (de 24 de Maio), que «para o governo Bolsonaro, floresta boa é floresta morta». Os dados confirmam, drasticamente, esta afirmação. Por exemplo, em Abril passado, a Amazónia brasileira perdeu 405,61 quilómetros quadrados de floresta, um aumento de 64% face ao mesmo mês do ano passado (dados oficiais Inpe-sistema Deter). A mesma devastação está a afectar a Mata Atlântica e o Cerrado, os outros dois biomas brasileiros.

Os que discordam da linha do Presidente são imediatamente substituídos: assim aconteceu com o ministro da Justiça, Sérgio Moro (o controverso juiz que havia sentenciado o presidente Lula à prisão e aberto o caminho para a eleição de Bolsonaro), e com os dois ministros da Saúde, ambos médicos, Luiz Mandetta e Nelson Teich, demitidos em plena pandemia.

A religião instrumentalizada

É mais improvável que Bolsonaro tenha problemas com a ministra que gere a pasta da Família, Mulheres e Direitos Humanos, Damares Alves, pastora evangélica. Um dos slogans preferidos de Bolsonaro é «Brasil acima de tudo, Deus acima de todos». Num tuite, o presidente – à semelhança de Trump, que também tem um uso compulsivo desta ferramenta de comunicação – escreveu: «Sou presidente porque a maioria das pessoas confiou em mim, tal como estou vivo porque Deus o permitiu» (26 de Maio).

Bolsonaro sempre usou a religião de forma instrumental, uma maneira de unir à sua volta (como sugere, precisamente, a etimologia do termo religião: “religar”, “unir”) uma parte da população brasileira, em particular as pessoas que seguem as designadas Igrejas neo-evangélicas, defensoras das correntes ideológicas do individualismo e do capitalismo neoliberal.

Nesta perspectiva, uma das decisões mais descaradas diz respeito à nomeação de Ricardo Lopes Dias – antigo missionário na região de Vale do Javari e integrante da organização evangélica Missão Novas Tribos do Brasil (Mntb, no estrangeiro foi rebaptizada Ethnos 360) –, como coordenador dos povos isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), o organismo federal dedicado à defesa dos direitos dos povos indígenas. Mntb é conhecida, precisamente, pelo seu fundamentalismo e pela falta de respeito pelas culturas indígenas. Felizmente, neste momento, a nomeação de Ricardo Dias foi bloqueada por um Tribunal Federal, considerando que comprometeria a política de não-contacto com os povos isolados.

ministro-evangelico-Mendonça-Bolsonaro-foto-Carolina Antunes_PRO advogado André Mendonça, o novo ministro da Justiça do Brasil, membro da Igreja Presbiteriana Esperança de Brasília. (Foto: Carolina Antunes/PR)

Um pequeno percalço num processo de subordinação que se encontra numa fase muito avançada. A Funai, de facto, já está nas mãos de evangélicos e latifundiários. O ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, do qual depende a Fundação, é o pastor evangélico André Mendonça (são, portanto, dois os pastores evangélicos que integram o Governo de Bolsonaro), enquanto o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, era delegado da Polícia Federal, considerado próximo dos latifundiários e ex-acusador da Funai.

A coragem do Cimi

Neste contexto, a Igreja Católica continua a opor-se, clara e corajosamente, a todas as políticas anti-indígenas e anti-ambientais do presidente. Em particular, mediante o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e a Repam (Rede Eclesial Pan-Amazónica), instituições que seguem a linha indicada pelo Papa Francisco com a Laudato Si' e o Sínodo Pan-Amazónico.

Bolsonaro não considera a Amazónia como património da Humanidade. Disse-o claramente na Assembleia das Nações Unidas (em Setembro de 2019, meses depois dos grandes e devastadores incêndios florestais) e reiterou-o em Fevereiro passado em resposta ao Papa Francisco que, na apresentação da exortação apostólica "Querida Amazónia", afirmou que essa região «também é nossa».

 brasil2Funeral de uma vítima da covid-19 no cemitério de Caju, no Rio de Janeiro, Brasil, em 29 de Maio de 2020. O Brasil é confirmado como um dos epicentros da doença causada pela SARS-CoV-2 coronavírus. (Foto: © LUSA)

O negacionismo de Bolsonaro (e Trump)

Desde o início, o presidente brasileiro adoptou uma posição negacionista em muitos assuntos relevantes (da emergência climática, até ao problema da Amazónia). Coerentemente, continua a manter essa atitude perante a pandemia. Minimiza sistematicamente o risco sanitário e multiplica declarações polémicas (por exemplo, disse que a covid-19 seria uma “gripezinha” e defendeu os milagres da cloroquina, o fármaco antimalárico). O Brasil, que ao que tudo indica será o próximo epicentro do contágio de covid-19, apresenta números aterradores: 439 mil infectados e quase 27 mil mortos, de acordo com dados oficiais do Sistema Único de Saúde do Brasil (actualizados no dia 29 de Maio). 

Entre os povos indígenas contam-se 147 mortos, 1350 infectados e 71 povos contagiados (segundo a Apib-Sesai). Números que não se podem minimizar, considerando o perigoso da situação. Além da maior vulnerabilidade (entre os povos indígenas a taxa de letalidade atinge os 10%), não podemos esquecer que nos territórios indígenas não existem equipamentos sanitários, que permitam enfrentar qualquer tipo de emergências de saúde, quanto mais se forem para o tratamento do novo coronavírus.

A esperança de muitos (e a nossa) é que, juntamente com desaparição do vírus, também Bolsonaro abandone o mais rápido possível a presidência (há muitas acusações contra ele) e, em Novembro (por ocasião das eleições), também Donald Trump, o seu colega norte-americano.

 

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