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08 julho 2020

Acompanhamento vocacional e vida na comunidade

Tempo de leitura: 9 min
Ousar trilhar um caminho de discernimento vocacional integral, acompanhado pela comunidade, é atrever-se a confrontar-se consigo mesmo e dar uma resposta cristã às inquietações do mundo de hoje.
Susana Vilas Boas
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Desde que a História é História que parece existir um atrito incontornável entre as gerações. De um lado, os jovens não se reconhecem com aquilo que lhes é imposto pela sociedade; por outro, os mais velhos – as autoridades da sociedade – queixam-se dos desleixos e da rebeldia dos mais novos. O incessante questionamento dos jovens, «porque é que tem de ser assim?», contrabalança com o abanar da cabeça dos adultos, enquanto murmuram o habitual «no meu tempo não era nada disto, havia respeito, os mais novos obedeciam aos mais velhos», etc. Seja como for, os que hoje parecem não entender os mais jovens também já foram, outrora, os reclamadores do Estado social. Que quer isto dizer? Que simplesmente se renderam às forças da autoridade social da sua época? Claro que não! Se assim fosse, a sociedade na qual cresceram seria igual à anterior e igual à actual. Ora isso não se verifica. Isto quer apenas dizer que é sempre mais fácil recorrer à resignação do que ponderar e realizar mudanças de fundo. Os adultos conhecem as dificuldades de lutar contracorrente e, de algum modo, procuram proteger os mais jovens. Muitas vezes, este desejo de protecção assume um carácter impositivo e quase cega e bloqueia a relação intergeracional. Contudo, fará sentido baixar os braços face a esta possibilidade? Não será, antes, questão de lutar para um caminhar conjunto em que a experiência de uns auxilia às mudanças que outros querem realizar?

Diz-se que burro velho não aprende línguas, por isso, os mais jovens são chamados a dar um primeiro passo para uma relação fecunda entre gerações. Não porque os mais velhos são incapazes de o fazer, mas porque a ousadia que tanto caracteriza a juventude facilita o início de um caminho que nunca se faz sozinho. A vocação não existe isolada dos outros, nem subsiste se se pretender vivê-la unicamente de mãos dadas com os que pensam como nós. Ousar trilhar um caminho de discernimento vocacional acompanhado é ousar confrontar-se consigo mesmo, com as suas inseguranças e com a própria fragilidade daquilo que se deseja. Afinal, a vocação não é fruto de um desejo egoísta, mas do sonho de Deus que se encontra com a autenticidade daquilo que somos – sem nos mutilar nem nos bloquear naquilo que verdadeiramente nos faz felizes e nos torna pessoas realizadas.

Acompanhamento vocacional: uma perda de tempo?

Diz a escritora e jornalista brasileira Clarice Lispector que «quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado com certeza vai mais longe.» Ora, quando se fala de vocação, fala-se sempre de “chegar mais longe”, ainda que, quase sempre, isso não signifique chegar depressa. Por outro lado, isso também não significa ficar parado! Antes, pôr-se a caminho e, fazendo face às dificuldades, viver a descoberta da vocação de modo seguro, aprofundado e autêntico.

Este caminho acompanhado não pode ser confundido com um caminho cheio de gente! Muitas vezes, pensamos que o facto de fazermos parte de um grupo de jovens e de “trabalhar muito na Igreja” basta para este acompanhamento vocacional. Afinal, Deus faz-se presente nestes grupos e nestas actividades – podemos senti-Lo! No entanto, como adverte o Papa Francisco, nos grupos a que pertencemos «têm a sensação de viver o amor fraterno, mas o seu grupo talvez se tenha tornado um simples prolongamento do próprio eu. Isto agrava-se se a vocação do leigo for concebida unicamente como um serviço interno da Igreja (leitores, acólitos, catequistas, etc.), esquecendo-se que a vocação laical é, antes de mais nada, a caridade na família, a caridade social e a caridade política» (Cristo Vive, n.º 168).

O compromisso da caridade é aquele que brota da fé – uma fé capaz de transfigurar o mundo! Não se trata de entender a vocação como uma acção de caridadezinha, mas de a entender como entrega e serviço de amor à humanidade. Não existe, por isso mesmo, uma vocação que esteja alheada da justiça, dos direitos humanos ou da misericórdia. Antes, estas são a base de toda a vocação – na medida em que nela se inscreve o sentido e a própria essência do ser humano. Assim, discernir e lutar para se viver a autenticidade da vocação e lutar verdadeiramente por estes valores que, como sabemos, não são fáceis de alcançar... leva tempo... exige força e a comunhão do máximo de forças que se possam juntar a nós. No entanto, a felicidade não é uma corrida contra o tempo, mas uma caminhada com o tempo – um tempo que se vive humanamente, de mãos dadas e nunca de modo isolado.

Onde leva o caminho vocacional?

Perante os desafios do mundo de hoje, às tantas injustiças, à violência, à fome e à destruição da vida, o papa propõe aos jovens um caminho de discernimento vocacional integral: um caminho que não fecha os olhos à realidade, mas, antes, que vai para lá do próprio umbigo. Trata-se de um caminho que se constituiu pela construção de uma amizade social, que é bem diferente dos caminhos da resignação e da imposição. Construir este caminho não é fácil. É sempre «preciso renunciar a qualquer coisa, é preciso negociar, mas, se o fizermos a pensar no bem de todos, podemos fazer a experiência maravilhosa de deixar de lado as diferenças para lutar juntos por um objectivo comum» (Cristo Vive, n.º 169).

 

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(Foto Cathopic, Luis Felipe) 

O caminho que percorremos só pode ser autêntico se vivido em comunidade; uma comunidade que, apesar das suas dificuldades, dos diferentes modos de pensar e agir, só subsiste de mãos dadas com todo o género humano. Esta luta não é perda de tempo! «O empenho social e o contacto directo com os pobres continuam a ser uma oportunidade fundamental para descobrir ou aprofundar a fé e para discernir a própria vocação» (Cristo Vive, n.º 170).

A vocação na e para a comunidade

Apesar das diferenças e das dificuldades de diálogo é na comunidade que frutifica a vocação; é nela que germina a “vida em abundância” que ansiamos; não porque esta vida leve a “ver-se livre da comunidade”, mas porque permite viver com ela e para (ao serviço) dela. Não se trata de se tornar escravo da comunidade, mas de tornar a nossa acção nela como um serviço que integra e espelha aquilo que verdadeiramente somos e desejamos ser. Se hoje fazemos “muitas coisas para a Igreja”, ousar viver a vocação levará a sermos “muita coisa na Igreja”! Já não se tratará de uma actividade/responsabilidade que temos de fazer para os outros, mas de um serviço nosso – no qual nos realizamos e por meio do qual vamos trilhando os caminhos da nossa vocação.

Ousar percorrer um caminho na e para a comunidade implica ousar a mudança – tanto a nossa (porque somos obrigados a uma descentralização, a um olhar para lá do nosso eu) como comunitária (na medida em que nos tornamos, na comunidade, embaixadores do bem comum e construtores de um mundo mais justo e mais humano). Atento a este desafio da mudança, exorta-nos o Papa Francisco, dizendo: «Por favor, não deixeis para outros o ser protagonista da mudança! [...] Continuai a vencer a apatia, dando uma resposta cristã às inquietações sociais e políticas que estão surgindo em várias partes do mundo» (Cristo Vive, n.º 174).

  

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