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05 outubro 2020

A vocação não é indiferente à realidade

Tempo de leitura: 9 min
Vivemos no mundo e a nossa vida alheia não é alheia à realidade concreta que nos interpela cada dia. E é no mundo em que caminhamos que a vocação se realiza, é nele que ela se desenvolve e frutifica.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

Que desafios se colocam à vocação? Porque parece ser tão difícil discernir o caminho? Como vencer as barreiras, que colocamos a nós mesmos, para trilhar um caminho vocacional autêntico, que nos realize? Como sair da teia de pressões e de opiniões de quantos nos rodeiam e de quantos nos querem “vender” um futuro fácil perante o qual ficamos deslumbrados? Todas estas questões nos invadem e, pouco a pouco, vemo-nos à deriva, perdidos do rumo que, verdadeiramente, queríamos seguir. Eis que o novo ano pastoral começa, mas, que passos damos no nosso caminho de discernimento vocacional?

O mês missionário abre o ano pastoral e, simultaneamente, coloca-nos numa posição de abertura face à realidade do mundo que nos rodeia. Neste ano, e em pleno tempo de pandemia, o Papa Francisco recorda, neste quinto aniversário da Encíclica Laudato Si’, a responsabilidade que cada ser humano tem para com o mundo. Alerta o papa que não se trata de procurar uma “ecologia simples”, como se o separar o lixo resolvesse tudo. Antes, o papa fala de uma ecologia integral que, atendendo à realidade, «integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia» (Laudato Si’, n.º 15). Por isso mesmo, somos convidados a pensar a vocação também com os olhos postos nesta responsabilidade.

Fechar os olhos à realidade que nos rodeia é pensar a vocação “voltada para o próprio umbigo”! Há que ter em conta, por isso mesmo, não apenas as nossas vontades e os nossos desejos (tantas vezes caprichosos e ligados ao facilitismo e ao deslumbramento da fama), mas também a realidade em que vivemos e aquela à qual tantas vezes insistimos em fechar os olhos.

A vocação é sempre ecológica

Se pensamos a ecologia como o cuidado com toda a Criação, se a pensamos como respeito por si mesmo e pelos outros, percebemos que a vocação terá de ser sempre pensada numa perspectiva ecológica. Só desta maneira teremos, por um lado, abertura para “arrumar a casa” que somos, evitando as poluições que ofuscam o nosso pensar e o próprio sonhar o futuro, evitando a correria desenfreada por fazer muitas coisas e, sobretudo, evitando que o deslumbramento do ter e do parecer perturbe a capacidade de olhar aquilo que somos e aquilo que, verdadeiramente, ansiamos ser. Por outro lado, esta dimensão ecológica da vocação permite-nos olhar para lá de nós mesmos. A vocação é sempre fecunda, dá sempre fruto e é sempre dom para os outros. Neste sentido, ela realiza-se indo ao encontro da realidade e nunca fugindo dela!

É certo que as necessidades, o sofrimento e as injustiças abundam no mundo em que vivemos. Quando olhamos a realidade nesta perspectiva, sentimo-nos impotentes e incapazes de abarcar tudo. Por isso mesmo, a realidade que nos envolve é uma realidade que precisa, não apenas de ser cuidada, mas que, sobretudo, precisa de ser amada. Ora, amar uma realidade ferida não é fácil e abraçar uma vocação que vá ao seu encontro também não é fácil. Só com o acompanhamento vocacional certo se torna possível discernir a vocação evitando a asfixia de não poder chegar a todas as situações que carecem de auxílio, só assim é possível não desanimar face ao mar de sofrimento que, tantas vezes, nos turva a visão para as inúmeras situações de esperança e de vida verdadeira que abundam no nosso mundo. 

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(© 123RF)

 

A indiferença não é compatível com a vocação

É frequente olharmos a realidade como se não fizéssemos parte dela. O desejo de fuga de situações adversas leva-nos a centrar o nosso discernimento apenas nos problemas circundantes: na nossa família, nos nossos amigos, nos nossos desafios futuros ligados ao trabalho e à economia. Daqui, criamos a ideia ilusória de uma vocação “fácil”, na medida em que sentimos que, se não formos por determinado caminho… não conseguimos alcançar nada. Fechamos a possibilidade de percorrer outras vias, apenas por uma ideia sobre a nossa realidade (a ideia que antevê dificuldades e lutas). No entanto, esta ideia sobre o “nosso mundo circunscrito” acaba por ter repercussões graves face à realidade do mundo que habitamos. Pouco a pouco, ficamos indiferentes às interpelações do mundo, ficamos indiferentes ao sofrimento dos outros e, sem nos apercebermos, desenvolvemos uma indiferença até por nós mesmos: já não importa quem somos nem quem desejamos ser, mas aquilo que criamos como “ideia do que é possível” em relação a nós, à nossa vida e ao mundinho fechado em que mergulhamos, como se nada mais existisse.

A indiferença não é distintiva do ser cristão. Nela não existe autenticidade do ser pessoa. Por isso mesmo, não podemos fingir que não existe um mundo além de nós mesmos nem que a vida pode fazer sentido se a circunscrevermos ao pequeno círculo familiar e à pequena rede de amigos que temos. O mundo é muito maior do que nós! Nele vivemos e com ele caminhamos, não sendo a nossa vida alheia à realidade que existe no mundo. Assim, para uma vida autêntica, não podemos ficar surdos aos apelos da realidade. Antes, há que deixar-se tocar pela realidade e permitir que ela nos fale. De facto, só «na realidade concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que “a realidade é superior à ideia”» (Laudato Si’, n.º 110). A apatia da indiferença nunca é geradora de vida. Antes, arranca-nos da realidade do que somos e do que estamos a viver. O mundo não é obstáculo à realização da nossa vocação. Ao contrário, é aí que a vocação se realiza, é nele que ela se desenvolve e frutifica. É certo que sozinhos não chegamos a lado nenhum, antes, somos engolidos pela pressão social, pelos desejos vãos que nos chegam diariamente através das redes sociais e dos meios de comunicação social. No entanto, o caminho vocacional não existe, nem pode ser trilhado de modo individual e isolado. Permitir que outros nos ajudem nesta descoberta é já, por si só, sinal e resposta às interpelações da realidade – interpelações estas que serão local privilegiado para a realização vocacional.

Vocação: triunfo da esperança

O desespero nunca é bom conselheiro e… quantas vezes somos tentados por ele! Os desafios que encontramos quando olhamos para os nossos sonhos de futuro, quando pensamos seriamente naquilo que gostaríamos de fazer com a nossa vida, tudo parece apelar a que nos deixemos levar ao sabor do vento, segundo as correntes sociais ou as vontades dos nossos familiares. As forças desvanecem e tudo, de repente, ganha aparência de impossível e de improvável. Porém… nunca estamos sós! Cristo é a nossa esperança e d’Ele vem o dom da vocação. Então, porquê desanimar? «A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas» (Laudato Si’, n.º 61). Sozinhos nada somos e nada conseguimos, mas com Cristo – e com aqueles que Ele coloca ao nosso lado neste caminhar – tudo podemos abraçar e vencer (cf. Ap 4,13).

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