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04 novembro 2020

Ecodiscernir a vocação

Tempo de leitura: 9 min
Ninguém é feliz sozinho, por isso, é necessário fazer um discernimento vocacional com realismo e responsabilidade, um caminho marcado pela interdependência, mas também pela autonomia própria de quem olha e vive a vida com maturidade.
Susana Vilas Boas
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Há dias, encontrei uma vizinha já de certa idade na rua. Entre as saudações e os desabafos sobre a vida e, particularmente, sobre a situação de pandemia que estamos a viver, acabámos por nos despedir com esta amável senhora a concluir resignadamente a nossa conversa com um: «É assim. Na vida, há viver e há morrer!»

Fui para casa a pensar nestas palavras e nas implicações que esta visão pode ter no nosso modo de viver e encarar a realidade. Como olhar a vida com esperança se o nosso dia-a-dia é marcado por uma resignação tão fatalista? Que implicações tem isto quando queremos empreender um caminho de discernimento vocacional?

Não é por acaso que o Papa Francisco alerta para o facto de que «quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade» (Laudato Si’, n.º 118). Ora, a apatia resignada da irresponsabilidade não existe apenas em relação ao mundo que nos rodeia. Ao contrário, ela afecta, antes de tudo, a própria pessoa, deixando-a à mercê das pressões exteriores e incapacitando-a de caminhar como pessoa livre, capaz de sonhar com um futuro autêntico em que é possível uma realização pessoal.

Visões fatalistas em nada ajudam ao discernimento e, ainda assim, quando falamos de discernimento vocacional, não faltam desculpas fatalistas que afastam e bloqueiam o caminhar. Tudo parece ser obstáculo intransponível, tudo parece assombrar o tempo presente, impossibilitando o pôr os pés ao caminho e, consequentemente, tudo se torna justificação para adiar o futuro, adiar o sonho e adiar a esperança de uma vida autêntica e feliz.

A importância do discernimento

Sem sucumbir a perspectivas fatalistas, tem de se pensar as coisas com realismo e responsabilidade. Cada ser humano é único e, por isso mesmo, o Maria vai com as outras não pode tornar-se lema de vida!

Para percebermos melhor a importância do discernimento vocacional, partamos de algo mais simples. Pensemos, por exemplo, no que acontece quando se deseja abrir um negócio ou mesmo construir uma casa. «Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará?» (Laudato Si’, n.º 185). Uma série de questões práticas que têm de estar “em cima da mesa das negociações”. Não é por acaso que os grandes investidores se rodeiam de uma equipa para analisar o mercado e, atendendo ao capital dos investidores, ajudar a reflectir os locais onde será mais seguro e proveitoso fazer o investimento.

De modo análogo, quem quer “investir” na sua vocação, mais do que olhar aos obstáculos, terá de fazer um discernimento. Este discernimento não pode ser feito ao acaso e sem critério (afinal, este é um “investir para/da vida”!). Antes, ele deve ser iniciado pela constituição da “equipa de reflexão”, isto é, o discernimento implica, antes de tudo, uma análise séria sobre as pessoas que, atendendo “ao nosso capital” (àquilo que somos e desejamos ser), melhor nos ajudem a descobrir a vocação que recebemos – aquela que plenamente nos realiza e nos faz felizes. Ao não estarmos sós no discernir da vocação, por um lado, ficamos mais salvaguardados quanto ao caminho a trilhar; por outro lado, contamos com a segurança de não termos de vencer obstáculos sozinhos!

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(© Cathopic)

A vocação é incompatível com o individualismo! A vocação é pessoal (não individual) e, por isso, ela tem em conta a totalidade do ser humano – incluindo o facto de que é um ser relacional. Isto não significa que, estando as responsabilidades partilhadas, tudo nos será fácil! Nós teremos quem nos ajude, mas não quem viva por nós, travando as nossas lutas sempre que necessário e apagando-se quando as coisas estiverem a correr bem! A vocação exige sempre responsabilidade. Uma responsabilidade marcada pela interdependência, mas também pela autonomia própria de quem olha e vive a vida com maturidade.

A ecologia necessária ao discernimento

No caminho do discernimento é preciso procurar afastar os ruídos que nos tornam surdos aos apelos do coração; é preciso remover os holofotes que nos cegam e nos impedem de ver a realidade que temos diante de nós; tem de se dar as mãos a quem caminha connosco para saborear a vida com autenticidade. Este é o esforço ecológico que tem de estar presente no discernimento. Não se trata de um andar por andar. Antes, este é um caminhar ecológico, um caminhar marcado por «uma ecologia integral [que] requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra» (Laudato i’, n.º 11).

Viver a vocação é viver enamorado e sempre em crescimento pessoal. Será esta uma forma de vida fácil? Certamente que não. Mas existirá alguma forma de vida fácil ou algum modo de ser feliz senão através da vivência plena do amor? Todos sabemos que amar não é fácil. O amor é sempre exigente, implica sempre vencer adversidades e ir além do que os outros dizem. Mas, não vale a pena viver o amor? Claro que sim! No amor não estamos sós. Existem sempre as pessoas que amamos e as pessoas que nos ajudam a vencer as adversidades em prol de uma vivência autêntica do amor. Na vocação sucede o mesmo: discerni-la e vivê-la é algo de exigente, mas que vale sempre a pena. Esta é uma exigência de amor que não temos, nem podemos, cumprir sozinhos, na medida em que nela se realiza e se encontra o sentido da nossa vida e da nossa existência.

Ecologizar a vocação

Ninguém é feliz sozinho, por isso, como pensar a vocação de modo isolado e individualista? Ouvir os que nos acompanham nem sempre é fácil, uma vez que dizem coisas para nos ajudar a olhar-nos de modo autêntico e não para nos agradar ou para ir ao encontro dos nossos caprichos. Discernir quem nos pode acompanhar na descoberta vocacional é sinal de maturidade: o que está em causa não é encontrar alguém que nos agrade ou pense como nós, mas alguém que nos ajude a ver mais longe. Alguém que, pela sua experiência de vida, já trilhou o caminho que nos propomos trilhar agora e que, pela sua vivência vocacional é para nós paradigma daquilo que desejamos ser e viver.

Ecodiscernir a vocação é ter a coragem e a ousadia de retirar todo o lixo que nos bloqueia o caminho, é separar o que gostamos do que amamos e, em última análise, é compreender e distinguir o que somos e o que sonhamos ser. Apenas deste modo «poderemos propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia» (Laudato Si’, n.º 15), construindo, passo a passo, um caminho saudável, puro e cheio de autenticidade, em que a vocação se torna, a cada dia, cada vez mais fecunda.

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