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28 outubro 2020

Fugir do planeta Trump?

Tempo de leitura: 8 min
A presidência Trump ficará para a História por causa da pandemia e da violência racial; mas, o actual presidente pode ganhar as eleições de 3 de Novembro devido ao sistema eleitoral, que não recompensa o voto popular. E Trump conta, agora, com uma maioria conservadora no Supremo Tribunal.
Paolo Moiola
Jornalista
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Donald Trump apelou ao voto presencial nas eleições presidenciais de 3 de Novembro e classificou a oposição como «esquerda radical» (Foto: Lusa)

«Bastardos estúpidos» (dumb bastards), disse Donald Trump na segunda-feira, 19 de Outubro, durante um comício em Prescott, Arizona. O insulto foi dirigido aos jornalistas da estação de televisão CNN, Cable News Network, rebaptizada «Comunist News Network» pelo presidente e os republicanos. «Covid, covid, covid», repetiu Trump para fazer compreender aos seus apoiantes, em delírio, a culpa dos jornalistas: falar demasiado da pandemia.  

«Há 220 417 razões para falar do vírus», respondeu Brianna Keilar, jornalista pivô da estação, referindo-se ao número estratosférico de mortes causadas pelo vírus Sars-Cov-2 no país nessa data.

Esta enésima e insuportável posição seria suficiente para demonstrar a total inaptidão («unfitness») de Donald Trump como presidente daquela que, ainda hoje, é a principal potência mundial. Mas, obviamente, haveria muitos mais aspectos a considerar, impossíveis de condensar nas linhas deste artigo.

trump1Amy Coney Barrett, a juíza conservadora escolhida por Trump foi confirmada pelo Senado, controlado pelos republicanos (Foto: Lusa)

Assim, esquecendo por um momento tanto a gestão desastrosa e culposa da pandemia como a violência racial exacerbada pela «lei e ordem» do presidente dos EUA, é conveniente debruçar-se num facto recente e de grande alcance, dado que isso afectará a vida dos americanos durante muito tempo, independentemente de quem ganhar as eleições de 3 de Novembro de 2020.

Referimo-nos à nomeação de Amy Coney Barrett como juíza do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América. Uma designação contestada, seja pelo processo feito a correr, seja porque o momento é inapropriado, a poucos dias das eleições. Tudo, porém, em consonância com o personagem Trump, sempre centrado em si mesmo e incapaz de pensar mais além do seu próprio benefício. A escolhida substitui outra mulher, Ruth Bader Ginsburg, uma juíza de ideias progressistas, que morreu em Setembro. Barrett – 48 anos, católica [supostamente, membro do People of Praise, um grupo ecuménico ultraconservador] e aluna do ex-juiz Antonin Scalia – é «uma advogada profundamente conservadora» (New York Times, 26 de Outubro). Agora, o tribunal, composto por nove membros, estará claramente desequilibrado a favor dos Conservadores: seis juízes contra três. Esta situação continuará por muito tempo, uma vez que a nomeação de juízes do Tribunal é para toda a vida.

A nova juíza está chamada a decidir sobre temas ideologicamente muito sensíveis como o aborto, a Segunda Emenda (o direito a possuir armas), a condição dos casais do mesmo sexo, mas também a política de emigração e as alterações climáticas (existem disputas entre os Estados e as companhias petrolíferas).

trump2A juíza Amy Barrett deverá garantir que o Supremo Tribunal dos EUA será profundamente conservador durante muitos anos (Foto: Lusa)

A primeira decisão, no entanto, relaciona-se com outro tema e já se aproxima. No dia 10 de Novembro, o Supremo Tribunal irá debater a «Affordable Care Act» – a lei conhecida como «Obamacare» – que alarga o seguro de saúde a milhões de cidadãos que, actualmente, não são abrangidos e estabelece algumas regras às ávidas companhias de seguros americanas. Uma lei que a presidência Trump há muito desejava abolir. Uma posição impensável para muitos, mas não nos EUA, onde a saúde não é um direito, mas uma mercadoria de mercado como qualquer outra. Mesmo em tempos de covid-19. Todavia, se Donald Trump não aceitar uma possível derrota eleitoral, o Tribunal, de maioria Republicana, poderá ser chamado a decidir sobre o resultado.

Trump ou Biden?

É neste ambiente político envenenado que os americanos vão às urnas no dia 3 de Novembro. Já quase 70 milhões de eleitores (incluindo Trump) votaram, pois existe a possibilidade de votar antecipadamente.

Os dois candidatos têm idade avançada: o Presidente Trump completou 74 anos (14 de Junho), o opositor Joe Biden vai para 78 (no próximo dia 20 de Novembro). O primeiro é um bilionário que, em 2016 e 2017, pagou 750 dólares de impostos federais, sendo o segundo um senador que, em 2019, pagou quase 300 mil dólares em impostos.  

bidenJoe Biden, o candidato democrata, está à frente em todas as previsões e tem mais de 80% de probabilidade de ganhar a eleição presidencial (Foto: Lusa)

Quem vai ganhar? As sondagens dão a vitória ao candidato democrata, mas nada é dado como certo. O problema não é a fiabilidade ou não das sondagens, mas a incógnita que o sistema eleitoral dos EUA oferece, um sistema híbrido que remonta ao longínquo ano de 1787.  

O sistema prevê a eleição de 538 «grandes eleitores» (também conhecidos como representantes ou delegados do Colégio Eleitoral). Ganha a presidência quem elege pelo menos 270 mais um. Cada um dos 50 Estados (mais o Distrito de Columbia-Washington) elege um certo número de grandes eleitores. Em cada Estado, o candidato que ganha – mesmo por um único voto (sistema de maioria simples) – leva todos os grandes eleitores disponíveis. É por isso que, normalmente, os candidatos concentram a atenção e comícios nos Estados incertos, mas decisivos, que são chamados de «swing states».

Este sistema único no mundo é discutível e debatido porque, na atribuição de grandes eleitores, acaba por se dar mais peso aos votos expressos num Estado pequeno do que nos de um grande, produzindo assim um resultado que pode estar em desacordo com o voto popular (dado pela soma de todos os votos individuais).

A democrata Hillary Clinton conhece bem o procedimento, pois, em 2016, recebeu mais 2,9 milhões de votos do que Trump, ganhando em grandes Estados como a Califórnia (com 55 grandes eleitores) e Nova Iorque (29). No entanto, não ganhou a presidência porque Trump tinha mais círculos eleitorais, vencendo em Estados menos povoados como Michigan (16 grandes eleitores) e Wisconsin (10), por exemplo. O mesmo aconteceu em 2000, quando o candidato democrata Al Gore ganhou no voto popular (mais 500 mil votos), mas perdeu no cálculo dos grandes eleitores para o republicano George W. Bush, que então se tornou presidente.  

Em suma, o sistema eleitoral dos EUA é injusto e pouco democrático, porque favorece o voto dos Estados com menos população, mas para o alterar seria necessário alterar a Constituição, o que é bastante complicado. Enfim, é este sistema de votação que torna o resultado das iminentes eleições norte-americanas muito incerto.

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