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05 dezembro 2020

A vocação face aos desafios do mundo em que vivemos

Tempo de leitura: 9 min
No contexto da pandemia, podem-se encontrar razões para desistir do caminho de discernimento vocacional. No entanto, também hoje somos desafiados a tomar decisões, pondo os pés ao caminho com perseverança, humildade e responsabilidade.
Susana Vilas Boas
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Não podemos negar que os tempos que correm têm sido tempos atípicos, difíceis e de grandes tensões pessoais e sociais. O que era a correria normal do dia-a-dia tornou-se uma maratona de loucura onde os afectos foram banidos, e as desinfecções e as máscaras se tornaram hábitos e motivos de conversa diária. Não obstante estes desafios, a vida continua e há coisas que, simplesmente, não podemos adiar. Se é verdade que muitas são as limitações e os contratempos do tempo que vivemos, não é menos verdade que cada vez se torna mais fácil inventar desculpas para nós próprios, para evitarmos dar passos concretos rumo a um caminho de discernimento vocacional.

Hoje afirmamos que a máscara, que somos obrigados a usar por causa da pandemia, nos sufoca, não nos deixa expressar como gostaríamos, turva-nos a visão, etc. Contudo, parecemos todos muito confortáveis com as máscaras que nos vamos auto-impondo, quando a questão que se coloca não tem que ver com o vírus, mas com a decisão; não tem que ver com a saúde física, mas com o abraçar de uma felicidade saudável; não tem que ver com o travar os avanços de uma doença que conduz à morte, mas com o acolher e arriscar meios que nos conduzam a uma vida plena. Digo isto, porque este tem sido o discurso que mais se tem desenvolvido nos últimos tempos: «Eu queria começar um caminho de discernimento, mas, por causa da pandemia, está tudo parado ao nível das formações»; «eu queria dar um passo em frente para aquilo que quero fazer na vida, mas agora é praticamente impossível». Desculpas à parte, a máscara do “coitadinho incapaz” não fica nada bem àqueles que se afirmam jovens, ousados e com vontade de viver autenticamente a vida! Não é a pandemia que nos põe entraves. Nós é que, confrontados com as dificuldades, nos pomos na posição de incapazes. Quem quer viver uma vida realizada, encontrará sempre pedras no caminho. Desistirão sempre aqueles que ficarem parados a olhar para as pedras que os obstaculizam. Vencerão sempre aqueles que descobrirem formas criativas de avançar e vencer estes obstáculos, ainda que tenham de assumir novos ritmos no caminhar.

A pandemia da pressa e do descartável

É ilusão acreditar que somos capazes de, por nós mesmos, tudo vencer. Isso seria ilusão e egoísmo. De facto, «o ser humano não é plenamente autónomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal» (Laudato Si’, n.º 105). Ao contrário, quando a liberdade do ser humano o coloca numa atitude de encontro com o outro, o caminho torna-se possível de trilhar. Actualmente, muitas são as portas fechadas. Mas, será que conseguimos ousar abrir janelas? Seremos nós capazes de encontrar as portas que se mantêm escancaradas?

Costuma dizer-se na minha terra que a pressa é inimiga da perfeição. Hoje, parece existir uma ânsia do instantâneo que nos bloqueia qualquer possibilidade de caminhar. O desejo de trilhar um caminho de discernimento vocacional vai sendo substituído, pouco a pouco, pelo desejo utópico de ser teletransportado para determinado lugar/momento que ansiamos viver. No entanto, o caminho faz parte da realização vocacional. Sem ele, é como se estivéssemos a construir uma casa sobre a areia: tudo ruiria antes mesmo de nos darmos conta! Não há descartáveis na vida vocacional: há opções/escolhas conscientes que temos de responsável e livremente tomar. Ficar parado não é opção!

Se é verdade que, por exemplo, muitas actividades e muitos encontros celebrativos e formativos foram cancelados, não é menos verdade que descobriremos sempre (se, de facto, quisermos!) alguém que nos possa acompanhar e nos ajudar a crescer no discernimento. Isso não é perder tempo, mas manter-se em forma rumo à própria realização pessoal. A vida e o tempo são dom de Deus: então, para quê ter pressa ou, simplesmente, desistir do caminho antes de começar a caminhar? Todos os atletas sabem que, para chegar à medalha de ouro, tem de se treinar muito (sob pena de se lesionar ou mesmo de nunca conseguir a medalha!). Também os músicos não partem directamente para grandes orquestras para fazerem grandiosas apresentações públicas; antes, todos começaram com a aprendizagem do abc musical, com muitos erros, muitos avanços e recuos, muitas frustrações e, até mesmo, alguns desânimos. Contudo, hoje os seus espectáculos são cheios de brilho, não porque seja fácil, mas porque durante a caminhada que fizeram ganharam capacidades, conhecimentos e uma maturidade que lhes permite serem absolutamente brilhantes na arte musical.

 

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© 123RF

Todos nós passamos por situações similares, embora em diferentes escalas. Todos tivemos de passar pela escola primária para sabermos ler e escrever. Actualmente, escreverão melhor, não aqueles que nasceram mais dotados para isso, mas os que viveram mais responsavelmente o caminho escolar, mesmo que, durante esse percurso, tivessem ficado doentes, tivessem dificuldades com a família e amigos, ou mesmo, que tivessem de faltar à escola por longos períodos. Para cada dificuldade, houve uma alternativa que permitiu continuar o caminho, embora este tivesse de ser feito com outros ritmos e/ou fora dos esquemas habituais. Não será o mesmo quando falamos no caminho vocacional, apesar dos tempos conturbados de pandemia em que estamos mergulhados?

Para lá do impossível

Não há impossíveis quando metemos os pés ao caminho com humildade e responsabilidade. A humildade permitir-nos-á pedir ajuda, deixar-nos acompanhar, aceitar que outros nos ajudem a ver e a manter um ritmo realista e humano no caminhar. A responsabilidade irá permitir-nos manter-nos fiéis no caminho, por mais adversas que sejam as circunstâncias; não porque sejamos casmurros, mas porque sabemos que assumir a vocação é assumir uma responsabilidade para connosco e para com a nossa vida, mas também para com toda a humanidade. As nossas pequenas decisões (mesmos as mais pequeninas) unir-se-ão sempre às decisões/opções de outros e, qual efeito de bola de neve, configurarão a realidade do mundo em que vivemos. Uma vez mais, esta configuração não é visível de um dia para o outro! Não é preciso ter pressa! Tem de se ser coerente!

O mundo que temos hoje é herdeiro das inúmeras decisões que as gerações passadas foram tomando. Por isso, a vida de hoje é diferente da vida de há cem anos. Há cem anos, o mundo tinha a configuração das decisões anteriores. E assim sucessivamente. Hoje é precisamente esse o desafio: o viver cada momento com a consciência de que cada escolha que fazemos é uma gota de água que se unirá a outras; e que, juntas, se tornarão no oceano de amanhã. Vendo desta forma, importará perguntarmo-nos sobre o que andamos a fazer: a trabalhar para um mundo mais autêntico e realizado (a partir da nossa própria autenticidade de vida)? A dar um tempo (vivendo em compasso de espera), enquanto não surgem melhores circunstâncias? A optar pela indiferença face ao que nos rodeia, como se a nossa vocação um dia caísse de céu e, de forma mágica, nos realizasse plenamente? A vocação só se converte em vida quando permitirmos que, de facto, isso aconteça! 

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