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05 fevereiro 2021

A vocação como bênção de Deus

Tempo de leitura: 9 min
A vocação é uma bênção de Deus e assim se pode perceber quando transfiguramos o modo de olhar para nós e a realidade.
Susana Vilas Boas
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Quando olhamos à nossa volta, ora nos sentimos impelidos a maldizer tudo o que nos rodeia, ora ficamos boquiabertos a admirar a beleza e a bondade que ainda reinam no mundo em que vivemos. Muitas vezes, olhamos a realidade com “lentes escuras” e não paramos de nos queixar: os políticos são todos iguais, na sociedade todos vivem para o seu próprio umbigo, na Igreja parece que ninguém faz nada de concreto pelos que mais sofrem, etc. Um rio de queixumes que nos põem de fora (qual treinador de bancada!) a olhar para a violência, a dor e o sofrimento presente na nossa actualidade. Contudo, sem que a realidade se altere, por vezes, ousamos olhar à nossa volta com “os olhos de Deus”. Aí, tudo parece diferente: a Natureza selvagem continua bela! Na sociedade, quantos vivem em atitude de interajuda aos outros! A Igreja, além da beleza das suas celebrações, continua a empenhar-se para ajudar os mais desfavorecidos, seja por instituições já criadas, seja pela dádiva de vida de muitos cristãos!

Sem nos apercebermos, passamos do oito para o oitenta nas nossas avaliações sobre o mundo e, sem nos darmos conta, num e noutro caso, o nosso olhar parece exterior à realidade da qual fazemos parte. Sem querer servir de exemplo, apenas vos conto um pequeno episódio da minha vida, antes de partir para a República Centro-Africana. Ao tratar de tudo o necessário para a partida, fui a uma consulta de oftalmologia. A simpática senhora que me atendeu quando fui comprar os óculos apercebeu-se – pelas conversas que eu ia tendo com a minha mãe – que eu estava de partida para África. Assim, sem se dar conta que estava a entrar em conversas privadas, ousou perguntar-me: «Desculpe, ouvi que vai para África... O que é que lhe deu para fazer isso?» Sem pensar na resposta, quando dei por mim, já lhe tinha respondido: «Fartei-me de me queixar que gostava que existisse um mundo melhor e mais justo e resolvi fazer alguma coisa!» Nem vale a pena falar da cara de surpresa e espanto que a senhora fez ao ouvir a minha resposta! A verdade é que somos parte integrante da realidade em que vivemos e não é possível pensar-se ou desejar-se percorrer uma vida autêntica e feliz sem sairmos da bancada e entrar em campo. Como fazer isso? Como não ter medo de dar o primeiro passo?

Em primeiro lugar, é preciso ter sempre presente que a vocação e o mundo no qual vivemos «se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal» (Laudato Si’, n.º 76). Em segundo lugar, temos de aceitar que, no “jogo da vida” não podemos ocupar todas as posições (um guarda-redes não é avançado, nem treinador, nem árbitro. Ele tem o seu lugar, a sua importância e a sua plena realização na função para a qual é chamado/tem missão).

Ousar bendizer

Para chegar a um primeiro passo no caminho da vocação, para chegar a um início de sólido discernimento, há que procurar bendizer. Ao fazermos este esforço, estamos a colocar nos nossos olhos as lentes da bondade e do amor de Deus e, consequentemente, estamos a alargar a nossa capacidade de visão. O nosso olhar ficará capaz de ver as manifestações de Deus, sem que isso nos impeça de constatar o sofrimento em que muitos vivem. Esta transfiguração no modo de olhar a realidade permitirá, por um lado, sermos capazes de nos vermos a nós mesmos com mais autenticidade (evitando que nos olhemos ou como super-heróis ou como coitadinhos impotentes face ao mundo que nos rodeia). Por outro lado, permite-nos desinstalar-nos da “torre” do nosso eu egoísta (levando-nos a sair do conforto da bancada e a entrar em campo, mesmo que isso signifique falhar, ficar lesionado ou mesmo ser criticado por quem fez da bancada o seu modo de vida!).

 

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(© Cathopic)

 

Ao bendizer, estamos a remar contracorrente, estamos a dizer «não» ao fatalismo que, muitas vezes, parece querer instalar-se nos nossos modos de pensar e nos nossos diálogos e que, consequentemente, se vai instalando e determinando o nosso modo de agir e olhar a vida. Ao bendizer, criamos horizontes de bondade para o mundo do qual fazemos parte, abrindo portas a um futuro de felicidade em que todos podem participar de alguma maneira. Além disso, ao bendizer, somos capazes de ver melhor e de melhor aceitar as nossas fragilidades e as fragilidades dos outros. Isso revela-se de extrema importância quando procuramos quem nos acompanhe no discernimento vocacional: o acompanhante pode ser um ser humano! Pode ter defeitos! Já não precisa de ser “perfeito”, basta que se identifique com a vocação que pensamos ser a nossa e nos acompanhe e ajude a discernir se esse será o nosso caminho (a nossa posição no jogo).

Ousar aceitar a bênção

Apesar de considerarmos que aceitar uma bênção/um dom/uma oferta é algo fácil, nem sempre isso acontece. Se bendizer já é um trabalho, muitas vezes, difícil, aceitar a bênção pode tornar-se ainda mais desafiante. Por exemplo, ser-nos-ia fácil aceitar um presente ou uma ajuda de um inimigo? Talvez, se o fizéssemos, fôssemos ficar desconfiados enquanto pensávamos interiormente “quando a esmola é grande, o santo desconfia!”.

Por não ser tarefa fácil, importa ter presente e trabalhar para ser capaz de aceitar a bênção. No que se refere à vocação, aceitar a bênção nunca é tarefa fácil: ou porque “levamos cartão vermelho” no processo de discernimento (e tomamos isso como afronta e não como bênção para chegar ao caminho da vocação que nos realize plenamente); ou porque isso dá sempre muito trabalho (não é algo que podemos aceitar passivamente, antes, somos impelidos a agir); ou porque, simplesmente, receamos as mudanças que terão de ser operadas na nossa vida (não conseguimos “jogar” segundo a posição que ocupamos, queremos ser “defesa e avançado” ao mesmo tempo!). Já nos alerta o Papa Francisco que «toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas nos estilos de vida» (Laudato Si’, n.º 5). Ora, mudar o estilo de vida nunca é tarefa fácil: implica desinstalarmo-nos do nosso confortável lugar na bancada! A questão que aqui se coloca será precisamente a de saber se somos capazes de aceitar a bênção que advém da vocação. Esta bênção é cheia de autenticidade e plenitude, mas estaremos nós à altura do dom oferecido? Permitiremos que o medo nos impeça de entrar em campo e nos realizemos? A apatia e o medo são um estilo de vida inaceitável para qualquer cristão e impensável para quem deseja verdadeiramente ser feliz! Por isso mesmo, hoje proponho que juntos percorramos o caminho da bênção (a que desejamos, a que oferecemos e a que aceitamos), unindo a nossa oração à do salmista, cantando com o entusiasmo de quem se sente abençoado: «Bendiz, ó minha alma, o Senhor, e todo o meu ser louve o seu nome santo. Bendiz, ó minha alma, o Senhor, e não esqueças nenhum dos seus benefícios. É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura. É Ele quem cumula de bens a tua existência e te rejuvenesce» (Salmo 103,1-5).

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