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05 março 2021

A ecologia da vocação: Crises e oportunidades

Tempo de leitura: 9 min
A vocação – que vivemos superando crises – abre portas à plena realização humana e é ponto de encontro com Deus e a Humanidade.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

A vocação desafia-nos desde o primeiro momento em que pensamos nela: seja pelo próprio conceito de vocação, seja por toda a dinâmica própria da vocação. Por um lado, a vocação é chamamento de Deus; por outro lado, a vocação implica o próprio ser que é chamado. O conceito «vocação» remete para a relação íntima que brota do encontro de Deus com a plenitude da autenticidade do ser humano. Por seu turno, a dinâmica da vocação dá-se como «caminho»; um caminho que nem sempre é claro e que, sendo pessoal, nunca poderá ser percorrido de modo individual (individualista).

Quando olhamos para a realidade da vocação e deparamos com os desafios do discernimento e percurso vocacional, somos como que impelidos para uma ânsia desenfreada de desejar tudo: querer viver uma vida de entrega e dádiva aos outros; querer viver uma vida mais dedicada à oração; querer realizar determinada profissão; querer viver perto da família; querer realizar grandes feitos além-fronteiras; etc. A pluralidade de caminhos pode tornar-se num ruído bloqueador do discernimento e, sem darmos por isso, acabamos por ficar surdos a nós mesmos, a Deus e a todos quantos nos poderiam ajudar neste caminhar. Muitas vezes até, caminhos conciliáveis parecem-nos impossíveis de percorrer, como se tudo se jogasse entre o ter de escolher só uma coisa ou não poder escolher tudo. Ora, a vocação tem a arte de, não apenas abrir portas à plena realização humana, como também ser ponto de encontro com Deus e com toda a Humanidade. Assim, a dimensão do bem comum está sempre presente, seja qual for a vocação. Se pensarmos no capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, S. Paulo torna evidente, pela analogia do corpo, que todos temos dons diferentes, todos somos diferentes, mas todos temos algo de específico que permite contribuir para a saúde de todo o corpo. No mesmo sentido, o Papa Francisco recorda que «no seio da sociedade floresce uma variedade inumerável de associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano» (Laudato Si’, n.º 232), sendo que não temos de desesperar pela ideia do querer ser tudo, como se essa fosse a nossa vocação! Ao contrário, há que banir todos os traços do desespero para deixar florir aquilo que somos e aquilo que autenticamente desejamos ser. Ao permitir-nos ser parte de um todo (abandonando a pretensão de ser super-herói e de se prescindir de tudo e de todos), contribuindo, segundo a especificidade do que somos, não apenas para a nossa plena realização, mas também para uma maior humanização do mundo em que vivemos e do qual fazemos parte. 

Vocação: para lá das crises

Muitas vezes, as dificuldades que enfrentamos face ao discernimento vocacional são dificuldades fictícias, sombras enormes de pequenas formigas que encontraremos no caminho. Ao fazermos um discernimento acompanhado, vamo-nos libertando de fantasmas que não existem e que ofuscam a realidade quando olhamos o presente e o futuro. Em Deus, não precisamos de trabalhar em várias frentes: tentar ser feliz; procurar viver uma vida de santidade; buscar a plenitude do que somos; etc. Tudo isto faz parte de um mesmo caminho: o caminho da nossa vocação. Deus não nos chama a uma esquizofrenia de vida! Antes, discernir e viver a vocação é responder afirmativamente às verdades mais profundas do que somos e do que ansiamos ser! Como nos lembra o papa, «quando alguém reconhece a vocação de Deus [...], deve lembrar-se que isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se santifica» (Laudato Si’, n.º 231). O «sim» à vocação é único (e diário!), mas as suas consequências são incontáveis (mais numerosas que as estrelas do céu ou os grãos de areia da praia!).

 

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(© 123RF)

Os nossos medos colocam-nos em situações contrárias ao que somos e cegam-nos quanto à amplitude da vocação: não estamos condenados a ter/viver determinada vocação, estamos abençoados com uma vocação – uma bênção que é dada e apenas aguarda ser descoberta e vivida. Dificuldades? Claro que sim! Mas, como diz a minha avó: «Deus dá o frio conforme a roupa!» Por outras palavras, os desafios podem ser grandes e as circunstâncias até podem ser adversas à vocação, mas não estamos sós neste caminho e Deus providencia sempre – no momento certo – as soluções e as ferramentas de que precisamos para seguir em frente. Se fizermos a nossa parte, Deus deixará de fazer a Sua?! Claro que não! Por isso, nada de desesperos! Ao contrário, a vocação é sempre horizonte de Esperança! 

Vocação: além dos medos!

No Movimento Perpétuo (1956), António Gedeão alerta para os medos face ao desconhecido («Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes»). Também a nossa história de Portugal se faz à luz do medo do desconhecido, mas não se fica por aí! Somos os grandes descobridores, não porque nos deixamos vencer pelo medo, mas porque convertemos o medo em esperança (o Cabo das Tormentas tornou-se Cabo da Boa Esperança).

O medo nunca é gerador de vida e a vocação é sempre fecunda! Assim, ousar viver verdadeiramente é ousar vencer o medo. Ora, isto não se faz de ânimo leve (simplesmente não seria possível fazê-lo), nem pode ser assumido de maneira irresponsável (isso seria imprudência). Antes, isto alerta-nos para o facto de que a vocação é sempre possível, porque o medo pode sempre ser vencido: pela nossa vontade, mas também pela fé e acção de Deus e daqueles que nos ajudam no caminhar vocacional. 

Agarrar a oportunidade... de viver autenticamente!

«Viver a vocação [...] não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa» (Laudato Si’, n.º 219). Fechar as portas à vida não é opção! A vida é cheia de oportunidades e cheia de possibilidades. Os nossos entraves, bloqueios, medos e dificuldades de ver mais longe do que as circunstâncias que nos rodeiam não derivam de impossibilidade vocacional, mas da impossibilidade de viver a vocação – desde o início do discernimento – como algo isolado, individual e tenebroso.

Por exemplo, actualmente, a pandemia parece ter vindo dificultar a vida de muita gente e, aos mais diferentes níveis, temos vindo a sofrer as consequências tanto da doença, como das medidas que temos de adoptar para evitar a sua propagação. Dir-se-ia que este não é o tempo favorável para nada, mas... será assim? Nestes tempos conturbados, muitos são os que, como nunca, dão a vida para que outros vivam, para que outros tenham o que comer e o que vestir. Certamente, muito ainda há para fazer, mas não podemos fechar os olhos à bondade que vai irradiando por meio do desespero social em que vivemos. O que tem isto a ver com a vocação que queremos discernir? Tudo! Este tempo não é Um «vazio», nem um intervalo na nossa vida. Este é o «momento presente» e, por isso mesmo, é o tempo favorável para a descoberta, para encontrar quem, mesmo com todas as restrições a que estamos obrigados, nos acompanhe e nos ajude a ver além daquilo que conseguimos alcançar com a nossa pequena perspectiva! 

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