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04 maio 2021

Vocação: exigência e acção

Tempo de leitura: 9 min
As exigências estão sempre presentes no caminho vocacional, desde o primeiro questionamento, durante todo o processo de discernimento e ao longo de toda a vida.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

Quando tentamos fazer uma retrospecção sobre a nossa vida, umas vezes, deparamos com um passado triste e cheio de frustrações; outras vezes, parece que as coisas não são assim tão assombrosas e até conseguimos recordar pessoas e acontecimentos que nos fizeram felizes, sonhar e ter uma esperança maior em relação ao futuro. No fundo, o nosso modo de olhar o passado vai variando de acordo com o que estamos a viver no presente. De qualquer modo, uns mais, outros menos, todos já experimentámos, ora recordar palavras ou acções que nos derrubaram, ora recordar outras que nos deram conforto e alento. Até chega a acontecer, em sentido inverso, que por vezes, alguém, recordando o passado, nos diz: «Aquilo que me disseste naquela altura mudou tudo.» Nesses momentos, vemos bem do modo como o que dizemos ou fazemos pode alterar e interferir na vida dos que nos rodeiam, por mais banais que possam parecer, à primeira vista, os nossos gestos e/ou palavras.

Faço lembrar estas situações para que possamos ir mais longe na nossa reflexão sobre o discernimento e vivência vocacional. Neste caminho – como em qualquer outro que trilhemos (mesmo que seja o caminho da fuga do discernimento da vocação!) – as nossas pequenas e grandes decisões são importantes e determinantes, tanto para nós (em relação ao futuro que estamos a construir e ao presente que estamos a viver), como para os outros (que lêem no que fazemos/dizemos/escolhemos uma mensagem que pode, ora destruir, ora edificar, as suas próprias vidas). Digo isto porque, muitas vezes, estamos tão absorvidos pelas nossas preocupações e indecisões que somos incapazes de ver para lá do próprio umbigo: «não faço isto, porque é difícil para mim», «não posso ir por ali senão já estou a ver a minha vida a andar para trás», ... e assim sucessivamente, num emaranhado de eus que por vezes nos fazem esquecer que não somos o centro do mundo. Não obstante estas dificuldades, acontece também que comecemos a «mentir» para nós mesmos: «eu até fazia isto, mas os meus amigos não iam entender», «eu até fazia aquilo, mas a minha família ia sofrer muito.». Enfim, um emaranhado de desculpas que usamos para nós próprios, procurando fugir de nós mesmos e das exigências da vocação (aquela que, dentro de nós, sabemos que é a única que nos fará felizes e onde nos sentiremos plenamente realizados).

As exigências da vocação

Não há caminhos fáceis nem decisões 100 por cento simples: ao escolhermos, estamos sempre a optar por não seguir outras estradas. Isso não é mau! Antes nos permite escolher o melhor! As exigências do Amor são muitas. Quantas vezes uma mãe não estará completamente estourada e, ainda assim, fiel à sua vocação, chega a casa e prepara a festa de aniversário do seu filho, ou fica acordada toda a noite junto à cama do filho doente? Ninguém lhe diga que deve sentar-se ou deitar-se e cuidar de si! As exigências do Amor são maiores e as únicas que dão plenitude à sua existência.

O mesmo acontece com a vocação (seja ela qual for). As exigências estão sempre lá, desde o primeiro questionamento vocacional, durante todo o processo de discernimento e ao longo de toda a vida. Não sendo um caminho fácil de percorrer, este é um percurso que não pode ser vivido individualmente; antes, exige um acompanhamento que nos permita, tanto descobrir o que somos e queremos ser, como fazer face a todas as dificuldades (e até às nossas próprias desculpas e desejos de fuga para o caminho mais fácil!). A verdade da vocação não se esconde unicamente dentro de nós. Como alerta o Papa Francisco, «o ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas» (cf. encíclica Laudato Si’, n.º 233).

 

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(© 123RF) 

O desejo de uma vida plena, para tornar-se realidade, tem de ousar vencer os medos e as inseguranças, assim como tem de, com humildade, aceitar que o «nós» é mais forte que o «eu». Como diz o ditado: «Quem quer chegar depressa vai sozinho, mas quem quer chegar mais longe vai acompanhado!» A vocação impele-nos sempre a chegar mais longe, a chegar onde não ousaríamos pensar ou sequer imaginar (cf. Ef 3,17-21). A vocação, não apenas amplia os horizontes e sentido da existência humana, como também implica e nos dá ferramentas (acompanhamento humano) para não desvanecer face às dificuldades ou acabar por fazer um caminho (de destruição) inverso àquele que sonhávamos.

A acção que conta!

Sabemos que, na nossa vida, todas as nossas acções contam: tanto para nós como para os outros. Mas, será que contam todas por igual? Diz-nos o papa que são as nossas acções que «manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na acção criadora de Deus» (Laudato Si’, n.º 131). Contudo, importará perceber que nem sempre se trata de uma questão de adquirir determinados comportamentos. Existem, de facto, alguns comportamentos que temos de aprender e adoptar, mas a nossa acção é algo bem maior do que um conjunto de comportamentos aprendidos!

Por exemplo, se pensarmos na questão ecológica, podemos aprender um bom comportamento e cumpri-lo (quase sempre): separar o lixo para fazer reciclagem. Contudo, enquanto esse comportamento não se tornar acção, isto é, enquanto não se tornar uma parte integrante daquilo que somos, haverá sempre a possibilidade de relaxarmos este comportamento e nem sempre o fazermos. Assim, se surgisse um momento em que não seria, de todo, possível separar o lixo: se tivermos um comportamento adquirido, iremos (quando muito!) lamentar por não o podermos fazer; mas, se este comportamento se tiver tornado em acção, iremos verdadeiramente sofrer (juntamente com o planeta) com esta situação, como se uma parte de nós estivesse a ser agredida (partilhando da mesma agressão a que a Natureza, neste caso, ficaria sujeita).

A plenitude da nossa vida reger-se-á sempre pelas nossas acções e não pelos nossos comportamentos. Ora, se a nossa acção é pautada pelo vício e pelo egoísmo, a que plenitude chegaremos, senão à da própria destruição? Se pensarmos na vocação, poderemos, eventualmente, pensar: «que devo fazer para começar um real acompanhamento vocacional?» e, à luz deste pensamento, adoptar um comportamento concreto (mesmo que não estejamos totalmente convencidos de que é necessário fazê-lo!): falar com alguém que, talvez, possa vir a acompanhar-nos no processo de discernimento. Ora, nada disto está errado e, muito provavelmente, até será assim que as coisas poderão iniciar-se. No entanto, se vivermos o acompanhamento vocacional unicamente numa linha comportamental – porque dizem que tem de ser – facilmente iremos desistir, zangar-nos e considerar que tudo não passa de uma grande perda de tempo. Ao contrário, se nos permitirmos, pouco a pouco, assimilar este comportamento, não como algo que «devemos fazer» ou como algo que nos é, de alguma maneira, imposto, passaremos a viver essa dimensão vocacional como uma realidade que também integra aquilo que somos. Aí, já não se tratará de um comportamento, mas de uma acção que realizamos. É todo o nosso ser que vive o acompanhamento vocacional e não apenas o nosso intelecto e/ou as nossas emoções.

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