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09 novembro 2021

Vocação: do sonho à esperança

Tempo de leitura: 9 min
Viver o sonho da vocação é partilhar uma esperança, uma vida, uma missão. Implica desinstalar-se, levantar-se e dar passos concretos.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

O poema «Pedra Filosofal», de António Gedeão, faz uma apologia do sonho – o sonho que «comanda a vida» e pelo qual «o mundo pula e avança». A beleza do poema pode levar a uma certa ambiguidade na compreensão daquilo que o poeta entende por sonho. De facto, não se trata nem do sonho que ocorre quando dormimos, nem do sonho que brota de uma ilusão ou de um caprichoso desejo do impossível. Aqui, o sonho é entendido como algo maior – uma missão que se anseia e que se tem esperança de alcançar. Se assim não for, como nos lembra o Papa Francisco, «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distracção, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade» (Fratelli Tutti’, n.º 33).

A distinção entre sonho e esperança parece revelar a essência do que está em causa e sublinhar que o sonho só «comanda a vida» se for reflexo de uma esperança verdadeira – uma esperança que vai para lá dos circunstancialismos e/ou dificuldades da vida. Ao contrário, por este sonho-esperança vale a pena lutar, não olhar às canseiras e viver de modo que, efectivamente, pelo nosso sonho (enquanto sinónimo de esperança) o mundo (nosso e dos outros) «pule e avance».

Este é o dinamismo intrínseco a toda a vocação. Esta, quando encarada – desde o discernimento – como desejo egoísta, onde só conta «o que eu quero», torna-se uma ilusão dilacerante para a vida da própria pessoa e, consequentemente, para o mundo que a rodeia. No entanto, se a vocação é entendida como dom e dádiva, como sonho de esperança e não como ilusão, esta tornar-se-á fecunda e frutificadora para a felicidade da pessoa e para o bem de todos.

Sonhar sem ilusões

Não é por acaso que António Gedeão, ao longo do seu poema, afirma que o sonho é «cabo da Boa Esperança». De facto, entendido o sonho como algo maior do que a vontade caprichosa e individual, as grandes tormentas e dificuldades que se antevêem no caminho, muitas vezes, tornam-se momentos de crescimento, amadurecimento pessoal e vocacional e, consequentemente, momentos de verdadeira realização e felicidade.

Claro está que não se pode entrar pelo mar adentro sem levar um bom equipamento, uma boa tripulação, um bom mapa, etc. Sem isso, o cabo das tormentas será sempre assombroso e intransponível. Trilhar os caminhos da vocação é avistar sempre um cabo da Boa Esperança, é viver de tal forma acompanhado na navegação que se está seguro de que as maiores dificuldades se tornarão nos maiores triunfos e que os maiores obstáculos podem converter-se como auxiliadores de um caminho mais plano e sem sobressaltos. Por isso mesmo, é preciso não esquecer que «ninguém pode enfrentar a vida isoladamente; precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos» (Fratelli Tutti’, n.º 8).

O discernimento vocacional possibilita «limpar» os nossos sonhos, retirar-lhes as ilusões e o egoísmo que, frequentemente, impedem de ver mais longe e de pôr os pés ao caminho em vista de uma vida realizada e verdadeiramente feliz.

 

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(© 123RF)

 

Caminhar movidos pela esperança

Ao irmos para lá da ilusão, mergulhamos numa esperança na qual Deus caminha connosco e, através daqueles que trilham o caminho ao nosso lado, nos vai dando a mão e libertando dos medos e das amarras que nos impedem de avançar. De facto, se o sonho-ilusão nos torna apáticos e ansiosos por uma realidade que nos seja «servida de bandeja», o sonho-esperança leva-nos a agir e a alcançar metas e horizontes nunca antes pensados nem sequer imaginados. «A esperança é ousada, sabe olhar além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna» (Fratelli Tutti’, n.º 55).

É verdade que, como tudo o que vale a pena, viver a esperança dá trabalho, não tem facilitismos e é praticamente impossível vivê-la isoladamente. Caminhar movidos pela esperança é sempre «caminhar com», sem esperar que ninguém caminhe por nós nem ter a pretensão de poder caminhar e alcançar a meta sozinho.

Levanta-te! É tempo de passar do sonho à esperança!

Como caminhar sem ser sozinho? Como ousar viver a esperança e trilhar os caminhos da vocação sem «derrapagens ilusórias»? Há duas coisas a ter em conta. A primeira é óbvia e fundamental: para caminhar é preciso «sair do sofá», levantar-se e dar passos concretos. O primeiro grande passo certamente implicará olhar em volta e descobrir quem, dentro da vocação para a qual nos sentimos chamados, nos poderá ajudar a discernir e a viver autenticamente aquilo que somos e aquilo que sonhamos (com esperança) vir a ser. Alguém que já está numa vivência vocacional similar àquela que sonhamos, certamente nos poderá melhor ajudar a ver os passos que devemos dar, como o devemos fazer e de que forma poderemos evitar cair no capricho e/ou na ilusão. Sem este primeiro passo, não há caminhar. É como se nos propuséssemos fazer uma caminhada, mas nunca chegássemos a sair de casa (apenas por medo de não conseguir!).

O segundo passo a dar está relacionado com este primeiro. É o da verdadeira consciência de que não estamos sozinhos. Pelo contrário, Deus coloca-nos uma imensidão de pessoas que nos podem ajudar a caminhar!

É verdade que ninguém é perfeito, mas, nas nossas imperfeições, todos somos capazes de ser voz de Deus e acolher as mediações que Deus põe no nosso caminho. Além disso, não nos faltam exemplos de pessoas que descobriram a sua missão e a viveram apenas porque tiveram a humildade e disponibilidade de coração de se deixarem ajudar, de deixarem que outros auxiliassem o caminho de discernimento e, finalmente, os ajudasse a caminhar na esperança. A comunidade eclesial, os nossos grupos e movimentos, dão-nos uma pluralidade de possibilidades e de pessoas que poderão ajudar-nos a fazer caminho e a discernir o melhor modo de caminhar.

A Igreja que somos e queremos ser é precisamente aquela que ousa a esperança e, para isso, não teme desinstalar-se e viver autenticamente, segundo uma vocação específica, a fé professada. «Como Maria, a Mãe de Jesus, queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação» (Fratelli Tutti’, n.º 278).

Partilhar o sonho da vocação é partilhar uma esperança, uma vida, uma missão e isso nada tem de ilusório nem de mutilador. Ao sonharmos juntos, vamos descobrindo modos de tornar o sonho possível! Viver o sonho, porém, implica desinstalar-se, levantar-se e dar passos concretos – passos que têm de ser dados não isoladamente: são passos pessoais, mas nunca individuais/individualistas. Discernir o sonho é ousar começar a vivê-lo! 

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