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17 maio 2019

A vocação como garante de humanidade

Tempo de leitura: 10 min
A vocação é dom para a humanidade e garantia de humanização de cada ser humano.
Susana Vilas Boas
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Durante muito tempo, falar de vocação era falar apenas de algumas vocações específicas. Este era um conceito reservado para uma elite de santos que recebiam um chamamento especial e cuja santidade, que já lhes era inerente, lhes permitia responder afirmativamente ao chamado. No entanto, sabemos que a vocação é algo mais. Esta não se reduz nem a determinados caminhos de vida, nem a determinado género de pessoas. A vocação, porque dom de Deus, é (paradoxal e extraordinariamente) humana!

A vocação é dom para a humanidade e é garantia de humanização de cada ser humano. Só assim se consegue atingir a amplitude da vocação como algo libertador, e não redutor, da própria existência humana. A vocação não é dirigida a uma elite, mas a todos e, se se pretender encontrar um denominador comum a toda a vocação (na sua pluralidade de caminhos), encontramos o próprio Deus e a característica indelével de esta existir sempre para o bem comum. De facto, a vocação não se compagina com o egocentrismo, antes nela habita intrinsecamente a dimensão do serviço, do amor a Deus e do amor a toda a humanidade.

Neste sentido, São Daniel Comboni apresenta-se na vanguarda desta essência da vocação ao afirmar que «chegou o tempo em que a humanidade inteira, que é o povo de Deus, já não deve formar mais que um só rebanho sob o cajado do Bom Pastor» (Escritos, n.º 1643). Para ele, este é o segredo que se esconde e alimenta toda a vocação. Só assim se compreende que o missionário tenha percorrido tantas vezes a Europa em busca de vocações para a missão africana. Ele não procurava nenhuma elite específica, mas batia a todas as portas chamando tudo e todos a um serviço à missão, de acordo com a especificidade da vida e vocação de cada um.

Se pensarmos bem, Jesus, ao longo da Sua vida terrena, chamou todos a Si, respeitando, porém, aquilo que cada um era. No seguimento do Seu chamamento, vemos jovens, velhos, crianças, homens e mulheres, em relação com Ele, independentemente do caminho de cada um (ricos, pobres, solteiros, casados, comprometidos com o templo, pagãos, etc.). O dom específico da vocação de cada um encontrava o seu clímax no encontro com Deus e na vida concreta ao serviço da humanidade (Mt 22,37-39). Hoje, o dinamismo vocacional rege-se pelo mesmo princípio, não existindo vocações iguais (apesar de algumas vocações se assemelharem), todas, pessoal e comunitariamente, convergem para Deus e, consequentemente, para a humanidade que nos habita e para aquela que nos rodeia.

 

Vocação: selo de humanidade

O que é a vocação senão aquilo que autentica a nossa existência? Que seríamos nós sem esta dimensão que dá sentido e configura a nossa vida? Estaríamos nós, por nós mesmos, à altura de nos realizarmos plenamente e mergulharmos no sonho de felicidade ao qual Deus nos chama?

Sem o discernimento e vivência do dom da vocação, somos como barcos à deriva em alto-mar: estamos perdidos, sem orientação, não sabemos nem onde estamos nem para onde vamos... pouco a pouco, deixamos até de saber quem somos.

A vocação autentica o ser humano enquanto pessoa que procura e se realiza nos diferentes momentos da sua vida. Esta autenticidade não advém, no entanto, de um caminho específico que se percorre. Antes, ela acontece em seguimento da essência de toda a vocação. Não é por acaso que São Paulo chama a atenção para que não existam rivalidades de caminhos (como se determinada especificidade fosse melhor que outra), uma vez que, por um lado, todas têm um dom particular que é único e necessário para o bem da humanidade (1Cor 12) e que, por outro lado, o importante não é o específico, mas a vivência e reconhecimento que todos somos simples servos e que cada um actua segundo a medida que o Senhor lhe concedeu (1Cor 3,5).

 

Ser humano para uma maior humanidade

Muitas vezes, somos levados a pensar que a vocação nos vai transformar em algo que não somos: numa espécie de anjos ou de santos alheados da realidade que nos envolve e afastados daqueles que mais amamos. No entanto, o que acontece é precisamente o contrário. De facto, sem nos darmos conta, vamos crescendo e vivendo e ganhando uma certa propensão para nos considerarmos melhores do que outros, para desenvolvermos a convicção de que, senão sempre, temos normalmente razão naquilo que afirmamos e nos posicionamentos que tomamos a respeito da vida e de quase tudo o que nos envolve.

A vocação vem desconstruir esta ideia e, em vez de nos tornar mais “abstractos” ou alheios à realidade, leva-nos a uma descida interior, pouco a pouco, torna-nos mais humanos e, consequentemente, mais capazes de ouvir e de ir ao encontro do irmão, uma vez que, sem nos darmos conta, vivendo autenticamente a nossa humanidade (com todas as suas fragilidades e capacidades) conseguimos tocar e entrar em diálogo com a humanidade dos irmãos. Esta humanização conduz também a um reposicionar-se na relação com Deus, isto é, a uma nova configuração da própria relação, em que o que impera deixa de ser a vontade de que Deus se submeta às nossas vontades individuais, passando a existir, antes, o desejo de, com Ele, melhor realizar a própria existência ao serviço da humanidade.

Este caminho da vocação só é possível, precisamente, porque esta não se reduz nem se destina a uma elite circunscrita. Ao contrário, ela é dom para todos, tornando todos extraordinariamente mais humanos, suscitando a cada um uma vivência mais autêntica «em benefício da humanidade e para a difusão e incremento da glória de Deus» (Escritos, n.º 512).

 

A vocação: epifania do divino no coração humano

Não podemos enganar-nos e andar atrás de uma vocação que “vem de fora”, que se apresenta, de alguma maneira, virtualizada e, por isso mesmo, inalcançável. Nem podemos continuar a acreditar que ela está reservada só para alguns ou que a vocação à qual pensamos ser chamados a viver é uma vocação menor comparada com outras que, aos nossos olhos, parecem ser mais extraordinárias…

Se a vocação fosse algo de abstracto ou apenas algo transcendente, nenhum ser humano poderia discerni-la, vivê-la ou amá-la. Por isso mesmo, a vocação reveste-se de humanidade na sua plenitude, permitindo, consequentemente, que nela se manifeste a acção e a magnificência de Deus. Se repararmos bem, como é que Deus levou a cabo a Sua missão Salvífica? Através da incarnação. Através da Sua humanização que se tornou capaz de resgatar toda a humanidade, libertando-a inclusive da escravidão da morte.

É no coração humano que o divino acontece. É nele que a vocação tem espaço para ser acolhida, discernida e vivida. Negar a humanidade inerente à vocação é negar a própria possibilidade da sua existência, na medida em que é fechar as portas àquilo que verdadeiramente somos. É nesta humanidade que nos habita que Deus continua a oferecer-nos o dom da vocação e nos vai, incessantemente, segredando: «Tranquilizai-vos! Não temais!» (Mt 14,27). «No mundo, tereis tribulações; mas, tende confiança: Eu já venci o mundo!» (Jo 16,33) «E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28,20).

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