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06 janeiro 2022

A pessoa do outro no caminho vocacional

Tempo de leitura: 9 min
O processo de discernimento passará sempre por uma relação com as pessoas que já passaram pelo mesmo que nós e que vivem aquele que é o sonho que pensamos ter para nós.
Susana Vilas Boas
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Por estes dias estive a rever O Nome da Rosa. Este filme, tão cheio de historicidade e provocação, traz ao de cima alguns dos maiores desafios do discernimento vocacional: por um lado, faz o confronto entre o sonho/desejo do que se quer ser e a tentação de todas as outras coisas que têm de ficar para trás quando se fazem opções (sejam elas quais forem); por outro lado, põe em evidência a importância do acompanhamento quando se procura discernir a vocação, deixando transparecer de forma clara o papel daquele que acompanha – ele não é juiz, mas companheiro de caminho, capaz de ir ao mais profundo da pessoa que procura discernir a sua vocação e ajudar a dissipar as nuvens provocadas pelo aliciamento de outros caminhos (caminhos que não são consonantes com a vida autêntica e feliz que se pretende viver).

Se o aspecto das escolhas que temos de fazer é importante, não é menos premente a questão do acompanhamento. No caso do filme, o jovem que acredita que a sua vocação é ser frade (acredita que esse é o caminho que lhe dá autenticidade de vida e de ser), faz-se acompanhar por um frade, isto é, por alguém que já passou pelo mesmo caminho que ele está a trilhar (com o mesmo tipo de dúvidas, inquietações e incertezas). Ao longo do filme, e apesar das histórias paralelas que se vão desenvolvendo, percebemos que há uma relação de confiança de parte a parte – tudo pode ser dito e os «erros»/infidelidades ao sonho que se deseja viver não são bloqueadores, mas partes integrantes do caminho. Digo isto porque, muitas vezes, ficamos com a ideia de que se damos um mau passo (um passo que vai ao arrepio do que verdadeiramente somos), então, temos todo o futuro comprometido e, portanto, o presente obriga-nos a escolher outro caminho de imediato! Claro que isto acontece quando o acompanhamento no discernimento vocacional não está a ser feito e achamos que podemos fazer tudo sozinhos.

O outro como um eu e como um nós

Um dos aspectos que mais condiciona o procurar/encontrar um acompanhante vocacional é, sem dúvida, o medo – o medo de estar errado na vocação que pensamos que nos habita; o medo de errar na pessoa que escolhemos; o medo de não conseguir realizar-se (e, portanto, nem vale a pena tentar); etc. Sem darmos por isso, tecemos uma teia de medos ao nosso redor e dentro de nós que a simples verbalização do que mais desejamos para nós parece trazer problemas: o que é que os outros vão pensar? Que vão dizer? Certamente que não estarão de acordo e vão-me azucrinar a cabeça por causa disto! Daqui se segue que, pouco a pouco, deixamos de ter consciência dos medos que temos (criamos) para evitar dar um passo em frente no caminho vocacional e passamos a ter a ilusão de que os outros são o obstáculo que nos impede de nos realizarmos. Deste modo, aquilo que deveria ser um caminho de «ir ao encontro» (de nós e dos outros), torna-se um caminho de ruptura e desconfiança; «criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o “meu” mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas “os outros”. Reaparece a tentação de fazer muros no coração para impedir este encontro com outras pessoas. E quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta a alteridade» (Fratelli Tutti, n.º 7).

 

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(© Cathopic/diegozamc)

 

Ninguém é feliz sozinho, nem o individualismo e/ou isolamento é caminho de autenticidade de vida para ninguém. Sabemos que as nossas escolhas não irão agradar a todos, mas isso será assim, sejam quais forem as nossas opções (então, porque não optar pelo que nos realiza?!). No entanto, também sabemos que aqueles que nos amam verdadeiramente, embora discordem de nós e/ou até se zanguem, nunca deixarão de ficar por perto e mal verifiquem que estamos, de facto, felizes na realização daquilo que sonhamos, todo o descontentamento ficará para trás das costas, uma vez que conseguimos chegar àquilo que mais desejam aqueles que nos amam: a felicidade de uma vida autêntica (mesmo que esta traga algumas dores de cabeça – tal como todas as formas de vida). Isto não significa que será fácil seguir o caminho do discernimento vocacional quando os que nos são próximos ficam insatisfeitos ou quando existem tantas circunstâncias difíceis que parecem agravar-se por causa disso. Contudo, estes são aspectos que não podemos pensar de modo isolado. Ao contrário, não estamos sozinhos a enfrentar esta realidade – os outros que já percorreram o caminho que trilhamos [aquele(s) que nos acompanha(m)], estarão sempre prontos a apontar-nos meios de vencer e/ou contornar os obstáculos. Quem nos acompanha não fará o caminho por nós, mas ajudar-nos-á a ver mais longe, a encontrar outras possibilidades para solucionar o que parece de impossível solução e, mais do que tudo, estarão lá para nos dar forças para continuar o caminho quando tudo parece querer derrubar-nos.

De mãos dadas com a vida autêntica

Ciente de que olhar o outro como aliado, como aquele que ajuda a encontrar soluções e não como aquele que cria problemas. O Papa Francisco convida-nos a «ultrapassar estas reacções primárias, porque o problema surge quando as dúvidas e o medo condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes e fechados. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro» (Fratelli Tutti, n.º 41).

Ir para lá do medo é ousar libertar-se das correntes que nos impedem de avançar e lutar por aquilo que acreditamos, por aquilo que somos e por aquilo que mais desejamos ser.

Ficar encalhado num eterno «um dia hei-de fazer isto» ou num «eu queria, mas...» nunca responderá ao nosso desejo de uma vida plena e cheia de autenticidade. Ao contrário, apenas nos manterá nas teias da ilusão de que «o amanhã chegará risonho, fácil e feliz». Ora, se pensarmos assim, o amanhã será sempre amanhã, nunca será o hoje. Estaremos a viver sempre «uma vida adiada», cada vez mais isolada porque andaremos ao sabor do vento: ora segundo as opiniões de uns, ora de acordo com as opiniões de outros.

Viver a vocação e o discernimento próprio do caminho vocacional, não é quebrar relações, mas alargar relações! Ninguém nos pede para cortar com o relacionamento com outras pessoas (amigos, família, etc.), mas, fazer um discernimento sério passará sempre por se relacionar com mais pessoas – com aquelas pessoas que já passaram o mesmo que nós e que vivem aquele que é o sonho que pensamos ter para nós. Assim, não fará sentido continuar a olhar o vazio do futuro. Antes, é tempo de olhar o hoje e dar passos concretos: vencer o medo e ir ao encontro do outro. Neste caso, viver-se-á em plenitude, não amanhã, mas no aqui e agora da nossa existência. Por isso, «oxalá já não existam “os outros”, mas apenas um “nós”. Oxalá tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos» (Fratelli Tutti, n.º 35). 

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