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06 março 2022

Os limites da vocação

Tempo de leitura: 9 min
Cada um de nós recebeu de Deus o dom de uma vocação específica, mas depende de nós procurar, ir ao encontro e ser perseverante num caminho de discernimento e vivência vocacional.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

Os dias e os meses sucedem-se e não há meio de se pôr um ponto final à pandemia. As medidas restritivas e de segurança oscilam ao sabor dos números: os números dos novos infectados, os números dos que morrem, os números dos internados; mas também os números que pautam a economia e a política. Todos desejam o fim de limitações como se o tirar da máscara e/ou encontrar uma cura para a covid-19 fosse suficiente para viver sem limites. Esta pandemia arrastou consigo correntes que vieram fortalecer as amarras que, ao longo da vida, vamos pondo no nosso caminhar. Aos medos do fracasso e dos insucessos pessoais, juntaram-se medos ligados à saúde, ao bem-estar e à auto-sustentabilidade. Tudo isto junto levou-nos a uma sensação de encurralamento social, profissional e também vocacional. Contudo, se é certo que hoje, mais do que nunca, as amarras do medo e o fatalismo do limite se impõem; não podemos negar que «a tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência» (Fratelli Tutti, n.º 33).

Mais forte do que o medo terá de ser a nossa coragem de ousar dar passos concretos em direcção a uma vida autêntica e de plena realização. Esta exigência de plenitude de vida não é apenas algo que responderá aos nossos anseios mais profundos, mas uma realidade que terá repercussões além de nós mesmos. Qualquer pessoa realizada e em realização é dom para todos à sua volta e, consequentemente, um triunfo para a própria humanidade. Ainda que no imediato possam surgir vozes de entrave e que procurem contrariar os nossos passos de discernimento e descoberta (o medo está também presente naqueles que nos rodeiam e nos amam), estas vozes serão de alegria quando virem que aqueles que amam estão felizes e no caminho que os realiza plenamente.

Para lá do medo e da ilusão

A pandemia veio tornar visível algo que, até então, era apenas simbólico. Hoje, todos vivem “atrás da máscara”. Uma expressão que ganhou realismo, mas que, em termos de vida autêntica não pode ser aceitável. De facto, quem pretende viver “por trás da máscara” do “coitadinho”, do “incapaz” ou do “impotente face às circunstâncias”, jamais poderá assumir-se como pessoa, e, menos ainda, como alguém que luta verdadeiramente pelos seus sonhos e desejos mais profundos. Tirar a máscara do medo é urgente! Tirar a máscara da auto-suficiência, também! A vocação é muito mais que um conjunto de palavras ocas e vai muito além de sonhos e ilusões! Viver a vocação é ousar viver pelo amor, com todas as exigências que são próprias ao Amor!

O amor declarado é bonito, mas sem manifestações concretas é murcho e vazio. O mesmo se passa com a vocação: dizer que se pretende discernir e viver o dom recebido é muito bonito, mas sem acções concretas é ilusão e hipocrisia – jamais as palavras, só por si, serão geradoras de vida fecunda! Claro está que isto não é algo fácil (se a felicidade fosse fácil seria uma realidade “automática” e não um caminho-meta a trilhar-alcançar!). Por isso, os passos concretos para a libertação do medo e das ilusões não acontecem de forma simples e de uma vez por todas. Antes, é um caminho duro que vai durando ao longo do tempo. Como conseguir vencer as amarras? Dando passos concretos num caminho de descentralização do “eu”. Do mesmo modo que ninguém é feliz sozinho, ninguém conseguirá trilhar um caminho de discernimento e vivência vocacional de maneira isolada. Urge, pois, dar passos em direcção àqueles que nos podem ajudar a crescer e a desenvolver o que somos, e, consequentemente, a ir mais longe do que os nossos medos, as nossas circunstâncias e... a nossa visão limitada sobre nós mesmos! Caminhar acompanhado é ter presente que esta «experiência que se realiza num lugar deve desenvolver-se ora “em contraste” ora “em sintonia” com as experiências doutras pessoas que vivem em contextos culturais diversos» (Fratelli Tutti, n.º 147); é assumir que, quem já viveu a experiência de um discernimento que conduziu a uma realização de vida que procuramos ter para nós, estará melhor qualificado para nos ajudar a ir mais longe e ver para lá das ilusões que vamos criando, ora por medo, ora por fantasia e fascínio por uma felicidade fácil e vistosa.

 

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Os limites como condição de possibilidade

Alerta o Papa Francisco que, na actualidade, «nota-se a penetração cultural de uma espécie de “desconstrucionismo”, em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo» (Fratelli Tutti, n.º 13). Este alerta não é sem fundamento e deve levar-nos a uma reflexão maior sobre as nossas escolhas quotidianas e sobre o impacto destas no nosso caminho e discernimento vocacional. Fechar os olhos às experiências que outros tiveram por ocasião da sua descoberta vocacional é enterrar a cabeça na areia como a avestruz e pôr-se à mercê de uma vida edificada sobre a areia, sem alicerces e marcada pela fragilidade.

Quantas vezes não ouvimos pessoas arrependidas de não ter ousado tomar certas atitudes no passado? Quase sempre estas pessoas depararam-se com oportunidades únicas que as levariam a uma vida autêntica e feliz, mas... quiseram responder a esses caminhos que se abriam diante delas de maneira individual, sem pedir ajuda a ninguém. Consequentemente, as circunstâncias adversas levaram a melhor e estas pessoas tiveram de se resignar a uma vida boa, mas não feliz; uma vida cómoda, mas não de plena realização. Será isso que desejamos para nós? Não estará a nossa pretensão de auto-suficiência a confinar o nosso futuro àquilo que as circunstâncias nos oferecem? Estaremos nós dispostos a abdicar da felicidade em nome do nosso orgulho e dos nossos caprichos egoístas?

O limite da nossa visão sobre o mundo, sobre as circunstâncias e sobre nós mesmos, não é algo de mau, nem algo que bloqueia e impede o nosso futuro. Ao contrário, neste limite temos a possibilidade de ir para lá do que até ousamos sonhar e descobrir, em nós e nos outros, muito mais do que até imaginávamos. Um caminho só se faz caminhando e este limite – que não é limitação – possibilita ir ao encontro de outros que vivem segundo uma vocação que pensamos ser a nossa; possibilita entrar num caminho de novas possibilidades e tornar a esperança mais forte do que a ilusão e a fé mais poderosa do que todos os medos.

Que sentido teria uma vocação se não houvesse possibilidade de realizar-se? Que dom seria este? Quando nos resignamos ao «eu queria, mas não é possível», estamos a dizer que Deus nos ofereceu um dom, mas bloqueou-nos todas as possibilidades de o recebermos. Que Deus seria este? Não faz sequer sentido pensar as coisas desta forma. Ao contrário, se o dom está lá, depende de nós procurar, ir ao encontro e ser perseverante num caminho (nunca fácil, mas sempre possível e com resultados concretos) de discernimento e vivência vocacional. 

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