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07 junho 2019

A vocação como missão

Tempo de leitura: 10 min
A vocação é um desafio, uma missão sempre em descoberta, marcada pelo discernimento e vivida em comunhão.
Susana Vilas Boas
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Muitas vezes ficamos presos a determinadas ilusões e o caminho de discernimento vocacional torna-se, sem darmos por isso, não num horizonte belo feito de escolhas, mas num percurso penoso de exclusões de possibilidades. Lá onde a tónica deveria ser a meta de felicidade que desejamos alcançar, colocamos a frustração de caminhos que gostaríamos de percorrer, mas “não pudemos”.

Vejamos o exemplo de São Daniel Comboni. Ele queria ser padre, estar ao serviço da Igreja e dar particular atenção aos povos africanos ainda não evangelizados. Num primeiro momento até parece que o “ser padre” era uma possibilidade pacífica já que isso não implicaria distanciar-se demasiado dos seus pais. No entanto, o desejo mais profundo de partir para o coração da África torna-se num emaranhado de dúvidas e de impossibilidades: Comboni não pode partir, porque não pode abandonar os pais! Mas o que faz ele? Deixa-se vencer pela impossibilidade? Não! Comboni dá um primeiro passo: discernir a vocação! Descobrir o sonho de Deus para ele e perceber se este sonho coincide com o seu próprio sonho de vida. Mas Comboni não se fica por aí! Uma vez realizados os exercícios espirituais e confirmada a sua vocação pela Igreja, Comboni vai ao encontro de um caminho de possibilidades para que os seus pais não fiquem sozinhos. Para isso, o seu ponto de partida não é encontrar alguém que cuide dos seus pais, mas, antes de tudo, confiar que em Deus tudo é possível! Só esta confiança faz Comboni decidir-se a partir mesmo antes de encontrar soluções: “quanto me custa o sacrifício que os meus pobres pais fazem ao separar-se de mim! A que sacrifícios sujeita o Senhor esta vocação! Mas foi-me assegurado que Deus me chama e eu parto seguro disso. Sei que atrairei a maldição e as imprecações de muitos [...] mas nem por isso eu quero deixar de seguir a minha vocação” (Escritos de Comboni, 15). Partindo da certeza em Deus, São Daniel Comboni encontra amparo para os pais e parte para as missões africanas, realizando plenamente a sua vida e vocação.

 

Vocação é sempre desafio missionário

Errado será pensar que todos os problemas de Comboni se resolveram com a partida para África! Os primeiros passos e o próprio discernimento vocacional não são momentos fáceis, mas a vida em plenitude vai muito além deles e muito além de facilitismos, quase tediosos, de uma vivência linear, sem obstáculos a vencer, sem razões para lutar.

O amor é sempre exigente! Este implica sempre a saída de si mesmo e uma partida em direcção ao outro; implica sempre dádiva, entrega e serviço. Este desafio de sair do “eu egoísta” pauta todos os caminhos vocacionais. Ninguém é feliz sozinho e, nesse sentido, o caminho para a felicidade arrasta consigo o desafio quotidiano de ir além dos próprios caprichos e do autocentramento. Em certa medida, é um desafio missionário incessante, uma vez que, sem Deus, as forças se desvanecem e a capacidade de amar dissipa-se.

O amor à missão africana não tornou apenas São Daniel Comboni capaz de partir para fora do seu país. Este amor – esta vocação! – tornou-o capaz de permanecer fiel à sua vocação apesar de todas as adversidades que encontrou. Contudo, esta capacidade não foi algo que o habitava intrinsecamente desde sempre, mas foi dom oferecido por Deus (Senhor da vocação!) que Comboni acolheu todos os dias! A fidelidade à vocação é, precisamente e antes de tudo, fidelidade ao amor de Deus. N’Ele não há obstáculos intransponíveis nem caminhos impossíveis. Apenas escolhas que, apesar de difíceis, são força e caminho para atingir a meta que sonhamos e que permanece no horizonte de Deus.

 

A missão não se faz sozinha… A vocação é comunhão

Muitas vezes olhamos para a vida dos santos e, sem nos darmos conta, olhamos para eles como se se tratasse de super-heróis, cheios de poderes supra-humanos, que lhes permite fazer coisas grandiosas! Quão errados estamos ao pensar assim! A vida humana não é feita de fantasias. Ela, porque é humana, faz irradiar o milagre do divino, mas nunca de um modo isolado!

São Daniel Comboni, grande santo e grande apóstolo da África, ficou conhecido para a História como aquele que acreditou na salvação dos africanos quando todos pareciam olhar para eles como seres menores, como sub-humanos sem grande importância. No entanto, Comboni não fez nada sozinho! Primeiro foi educado pelos seus pais, depois pelo seminário e, quando sentiu o chamamento para a missão africana… precisou de ajuda (como todos nós) para o discernimento vocacional, precisou de ajuda para cuidar dos seus pais durante o tempo que viria a passar na África, precisou de apoio financeiro de quantos o puderam ajudar, precisou da oração de todos, para permanecer fiel à sua vocação. Mais: uma vez decidido a partir, não o pôde fazer sozinho: partiu em comunidade rumo a uma comunidade. Foi em comunidade, e sempre em comunhão com a Igreja e com o mundo, que Comboni viveu a sua vida missionária. Quando falava dos seus companheiros, Comboni dizia: «Os nossos missionários, quer sacerdotes quer leigos, vivem juntos como irmãos na mesma vocação» (Escritos, 1859). Nada que venha de Deus se faz individualmente! Comboni viveu isso na pele e não se esquivou a trabalhos e canseiras para fazer convergir o apoio de todos, segundo a especificidade da vocação de cada um, para que o Evangelho fosse anunciado a toda a humanidade. Isto o tornou o grande santo que veneramos hoje: a forma como humildemente recusou a pretensão de querer fazer tudo sozinho (seria impossível fazê-lo!), e com confiança plena em Deus que é o Senhor de toda a vocação, chamou e acolheu todas as forças que, de um ou de outro modo, queriam e puderam contribuir para a missão que lhe foi confiada. Esta era a sua verdadeira vocação: uma vocação marcada pelo amor-comunhão; uma vocação que o impelia a uma missão concreta, uma missão que não era só dele, mas de todos quantos professavam a fé em Jesus Cristo!

 

Vocação é sempre missão!

A vida, para ser vivida, implica acção, objectivo, sentido! Se pensarmos a vida numa perspectiva cristã, podemos sempre falar dela como missão. Isto não significa que todos teremos de, como Comboni, partir para terras longínquas! No entanto, isto implica que, tal como ele, a vivência da vocação signifique sacrificar toda a existência para socorrer os irmãos em Cristo (Escritos, 1769), isto é, responder ao mandato de Jesus de amar toda a humanidade. A vocação comum de todo o cristão é precisamente a missão de amar sempre, tudo e todos. Por isso mesmo a vocação assume sempre uma dimensão divina na medida em que esta «eleva acima da esfera das mais nobres e brilhantes iniciativas humanas» (Escritos, 1550) – ela é sempre movida a partir da fé em Deus.

A vivência vocacional nunca deve ser, por isso mesmo, entendida como algo estagnado no tempo nem como algo que se tem «de esperar para que aconteça». Antes, ela é uma missão sempre em descoberta, sempre marcada pelo discernimento e sempre vivida em comunhão com os irmãos (nunca de modo individualista!). Não existem vocações para super-heróis, mas para seres humanos que ousam acolher em si o dom e a força de Deus, unicamente capaz de se manifestar nos gestos de amor e serviço em favor da humanidade.

 

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