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13 novembro 2022

«Jesus Cristo fez-se pobre por vós»

Tempo de leitura: 12 min
Celebramos hoje o VI Dia Mundial dos Pobres. Na mensagem deste ano, de que apresentamos uns excertos, O papa sublinha que este dia é «uma sadia provocação para nos ajudar a reflectir sobre o nosso estilo de vida e as inúmeras pobrezas da hora actual».
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Deslocados do Iémen em Saná, a capital do país, esperam ajuda alimentar de uma ONG no passado dia 5 de Setembro; o país atravessa uma das piores crises do mundo, com mais de 17 milhões de pessoas a precisarem, urgentemente, de assistência humanitária (© Lusa/ EPA/Yahya Arhab)

 

Mensagem do Papa Francisco para o VI Dia Mundial dos Pobres

 

Há alguns meses, o mundo estava a sair da tempestade da pandemia, mostrando sinais de recuperação económica que se esperava voltasse a trazer alívio a milhões de pessoas empobrecidas pela perda do emprego. Abria-se uma nesga de céu sereno que, sem esquecer a tristeza pela perda dos próprios entes queridos, prometia ser possível tornar finalmente às relações interpessoais directas, encontrar-se sem embargos nem restrições. Mas eis que uma nova catástrofe assomou ao horizonte, destinada a impor ao mundo um cenário diferente.

As consequências da guerra*

A guerra na Ucrânia veio juntar-se às guerras regionais que, nestes anos, têm produzido morte e destruição. Aqui, porém, o quadro apresenta-se mais complexo devido à intervenção directa de uma «superpotência», que pretende impor a sua vontade contra o princípio da autodeterminação dos povos. Vemos repetirem-se cenas de trágica memória e, mais uma vez, as ameaças recíprocas de alguns poderosos abafam a voz da Humanidade que implora paz.

Quantos pobres gera a insensatez da guerra! Para onde quer que voltemos o olhar, constata-se como os mais atingidos pela violência sejam as pessoas indefesas e frágeis. Deportação de milhares de pessoas, sobretudo meninos e meninas, para os desenraizar e impor-lhes outra identidade.

Milhões de mulheres, crianças e idosos vêem-se constrangidos a desafiar o perigo das bombas para pôr a vida a salvo, procurando abrigo como refugiados em países vizinhos. Entretanto, aqueles que permanecem nas zonas de conflito têm de conviver diariamente com o medo e a carência de comida, água, cuidados médicos e sobretudo com a falta de afecto familiar. Nestes momentos, a razão fica obscurecida e quem sofre as consequências é uma multidão de gente simples, que vem juntar-se ao número já elevado de pobres. Como dar uma resposta adequada que leve alívio e paz a tantas pessoas, deixadas à mercê da incerteza e da precariedade?

 

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Papa Francisco almoça com alguns convidados na Sala Nervi no Vaticano, para assinalar o Dia Mundial dos Po­bres, no dia 17 de Novembro de 2019 (© Lusa/Claudio Peri)

 

Comunhão com os pobres

Neste contexto tão desfavorável, situa-se o VI Dia Mundial dos Pobres, com o convite – tomado do apóstolo Paulo – a manter o olhar fixo em Jesus, que, «sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). Na sua visita a Jerusalém, Paulo encontrara Pedro, Tiago e João, que lhe tinham pedido que não esquecesse os pobres. De facto, a comunidade de Jerusalém debatia-se com sérias dificuldades devido à carestia que assolara o país. O Apóstolo preocupou-se imediatamente em organizar uma grande colecta a favor daqueles pobres. Os cristãos de Corinto [...] em cada primeiro dia da semana recolhiam quanto haviam conseguido poupar e todos foram muito generosos.

Neste momento, penso na disponibilidade que, nos últimos anos, moveu populações inteiras para abrir as portas a fim de acolher milhões de refugiados das guerras no Médio Oriente, na África Central e, agora, na Ucrânia. As famílias abriram as suas casas para deixar entrar outras famílias, e as comunidades acolheram generosamente muitas mulheres e crianças para lhes proporcionar a devida dignidade.

Com efeito, a solidariedade é precisamente partilhar o pouco que temos com quantos nada têm, para que ninguém sofra. Quanto mais cresce o sentido de comunidade e comunhão como estilo de vida, tanto mais se desenvolve a solidariedade. Aliás, deve-se considerar que há países onde, nas últimas décadas, se verificou um significativo crescimento do bem-estar de muitas famílias, que alcançaram um estado de vida seguro. Trata-se de um resultado positivo da iniciativa privada e de leis que sustentaram o crescimento económico, aliado a um incentivo concreto às políticas familiares e à responsabilidade social. Possa este património de segurança e estabilidade alcançado ser agora partilhado com quantos foram obrigados a deixar as suas casas e o seu país para se salvarem e sobreviverem. Como membros da sociedade civil, mantenhamos vivo o apelo aos valores da liberdade, responsabilidade, fraternidade e solidariedade; e, como cristãos, encontremos sempre na caridade, na fé e na esperança o fundamento do nosso ser e da nossa actividade.

 

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Mulher pede esmo­la numa rua de Salonica, Grécia (© 123RF)

 

Companheiros dos pobres

No caso dos pobres, não servem retóricas, mas arregaçar as mangas e pôr em prática a fé através de um envolvimento directo, que não pode ser delegado a ninguém. Às vezes, porém, pode sobrevir uma forma de relaxamento que leva a assumir comportamentos incoerentes, como no caso da indiferença em relação aos pobres. Além disso, acontece que alguns cristãos, por um apego excessivo ao dinheiro, fiquem empantanados num mau uso dos bens e do património. São situações que manifestam uma fé frágil e uma esperança fraca e míope.

Sabemos que o problema não está no dinheiro em si, pois faz parte da vida diária das pessoas e das relações sociais. Devemos reflectir, sim, sobre o valor que o dinheiro tem para nós: não pode tornar-se um absoluto, como se fosse o objectivo principal.

Entretanto não se trata de ter um comportamento assistencialista com os pobres, como muitas vezes acontece; naturalmente é necessário empenhar-se para que a ninguém falte o necessário. Não é o activismo que salva, mas a atenção sincera e generosa que me permite aproximar de um pobre como de um irmão que me estende a mão para que acorde do torpor em que caí.

 

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Bairro de Kibera, na periferia de Nairobi, Quénia (© 123RF)

 

Libertar os pobres

A mensagem de Jesus mostra-nos o caminho e faz-nos descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e há outra pobreza – a d’Ele – que liberta e nos dá serenidade.

A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afecta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adopção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se formas novas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer.

Ao contrário, pobreza libertadora é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de serem objecto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade.

 

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Mulher pede esmola nas ruas de Katmandu, capital e maior cidade do Nepal (© 123RF)

 

A pobreza cristã

O texto do Apóstolo a que se refere este VI Dia Mundial dos Pobres apresenta o grande paradoxo da vida de fé: a pobreza de Cristo torna-nos ricos. Se Paulo pôde comunicar este ensinamento – e a Igreja difundi-lo e testemunhá-lo ao longo dos séculos – é porque Deus, em seu Filho Jesus, escolheu e seguiu esta estrada. Se Ele Se fez pobre por nós, então a nossa própria vida ilumina-se e transforma-se, adquirindo um valor que o mundo não conhece nem pode dar. A riqueza de Jesus é o seu amor, que não se fecha a ninguém mas vai ao encontro de todos, sobretudo de quantos estão marginalizados e desprovidos do necessário. [...] Também nos nossos dias parece difícil, como foi então para os discípulos do Senhor, aceitar este ensinamento (cf. Jo 6, 60); mas a palavra de Jesus é clara. Se quisermos que a vida vença a morte e que a dignidade seja resgatada da injustiça, o caminho a seguir é o d’Ele: é seguir a pobreza de Jesus Cristo, partilhando a vida por amor, repartindo o pão da própria existência com os irmãos e irmãs, a começar pelos últimos, por aqueles que carecem do necessário, para que se crie a igualdade, os pobres sejam libertos da miséria e os ricos da vaidade, ambos sem esperança.

Oxalá este VI Dia Mundial dos Pobres se torne uma oportunidade de graça, para fazermos um exame de consciência pessoal e comunitário, interrogando-nos se a pobreza de Jesus Cristo é a nossa fiel companheira de vida.

 

(Papa Francisco)

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Março 2024 - nº 744
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