Opinião
26 maio 2022

A surdez dos monólogos a várias vozes

Tempo de leitura: 3 min
Se as qualidades que fazem um bom ouvinte podem parecer óbvias, isso não significa que seja fácil pô-las em prática.
Rita Figueiras
Docente da Universidade Católica
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No âmbito do 56.° Dia Mundial das Comunicações Sociais – que este ano se celebra no dia 29 de Maio – o Papa Francisco dedica a sua mensagem à escuta. Se as qualidades que fazem um bom ouvinte podem parecer óbvias, isso não significa que seja fácil pô-las em prática. É um equilíbrio delicado entre receber e retribuir: receber informações e dar atenção ao outro. Isto é tão mais importante se tivermos em conta que a maneira como ouvimos molda tanto a conversa quanto a maneira como falamos e respondemos.

À primeira dificuldade junta-se uma outra: a cultura ocidental enfatiza, cada vez mais, o indivíduo, bem como a sua capacidade de afirmação e expressão individuais. Se não há nada intrinsecamente errado nisto, no contexto digital, esta norma tende a traduzir-se na vontade de cada um se expressar e ser ouvido, mas pouca disponibilidade para ouvir o(s) outro(s). Basta pensar que foi nesta cultura digital que emergiu a era das selfies (fotografias que uma pessoa tira de si própria para, na maioria das vezes, postar nas suas redes pessoais para outros verem), expoente visual do autocentramento.

Uma outra consequência é que a expressão e a escuta – duas dimensões intrínsecas da comunicação – estão, crescentemente, dissociadas uma da outra. Esta dissociação dificulta a capacidade de diálogo do ponto de vista interindividual, mas também num sentido mais amplo, em termos sociais. A questão torna-se ainda mais premente se pensarmos que vivemos num tempo em que a intolerância e o radicalismo comprometem a estabilidade e a paz social.

Este tempo incita uma forma de abordar o mundo, e as pessoas, num estado de espírito adverso. Ou seja, criticar e refutar o pensamento do outro no pressuposto de que a oposição é a melhor maneira de discutir uma ideia e a forma mais assertiva de mostrar que se está realmente a pensar. Neste contexto, o diálogo torna-se efectivamente muito difícil, porque a referida dissociação entre expressão e escuta instiga uma atitude combativa que orienta a audição para a procura de pistas que permitam provar que se está certo e o outro errado.

Estudos realizados sobre o modo como as pessoas se comportam em debates quando têm uma atitude adversativa afirmam isso mesmo: quando se está nesta postura, tem-se, em média, uma capacidade de espera de dez segundos antes de o botão da refutação ser accionado dentro do interlocutor. São cerca de três frases antes de se interromper o outro. Mesmo que não se interrompa, começa-se a fazer anotações mentais de tudo o que se quer refutar. Acresce que ao se ocupar a mente com isso, perde-se capacidade de ouvir o que verdadeiramente está a ser dito. Esta postura anula a disponibilidade para perceber e compreender os argumentos das outras pessoas, bem como para identificar onde se pode construir pontes para, assim, se identificar um terreno comum de diálogo. Sem este esforço, tal como refere o Papa Francisco na mensagem para este dia, «o diálogo não passa de duólogo, ou seja, um monólogo a duas vozes». 

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