Reportagens
27 maio 2020

As regras da Pintolândia

Tempo de leitura: 17 min
Em Roraima, foram criados treze abrigos para migrantes venezuelanos. Todos se enquadram na chamada «Operação Acolhida», lançada em Março de 2018 e coordenada pelo Exército brasileiro. Em Boa Vista, visitámos o Abrigo de Pintolândia, que acolhe apenas indígenas.
Paolo Moiola e Marco Bello
Jornalistas
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Brasil: «Odisseia Warao»: Visita a um centro para indígenas (2)

Boa Vista. No outro lado da rua, à beira de uma grande praça sem adornos, grupos de pessoas estão acampados com sacos cheios com os seus poucos pertences, principalmente roupas e algumas frigideiras. Há crianças e muitas vezes bebés. Estamos à espera de poder entrar no refúgio do outro lado da rua. São todos indígenas porque Pintolândia – o nome vem do bairro – é um abrigo aberto apenas a candidatos de etnia indígena.

O acesso é guardado. Há barreiras e controlos. Para entrar ou sair, os hóspedes têm de mostrar um cartão com foto e dados pessoais. Todos os outros não podem entrar, a menos que passem por um pedido formal longo e complicado. E a resposta positiva não é de todo óbvia. Tivemos a sorte de obter uma autorização de visita por vias menos formais e mais rápidas.

Depois de mostrar um documento aos militares de guarda e assinar um registo, podemos passar e aguardar a chegada do nosso guia. Meire trabalha para a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), organização humanitária brasileira ligada à igreja independente Rede Luz, fundada por José Trigueirinho Netto, em Minas Gerais. A FFHI, juntamente com o Exército e o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), participa na Operação Acolhida, lançada em Março de 2018 pelo Governo brasileiro para ajudar os migrantes venezuelanos. Mas é o Ministério da Defesa o responsável pela logística e o comando das operações.

Um mar de redes

A primeira coisa que vemos – impossível não reparar – é uma faixa pendurada no alpendre que protege a entrada: as regras do abrigo estão enumeradas. Severas e pormenorizadas, como: não são permitidas entradas entre as 22h00 e as 5h30; não são permitidas visitas externas; proibido fumar ou consumir álcool dentro do refúgio.

Logo à entrada pode ter-se uma ideia da estrutura do campo: no centro há um grande barracão (coberto com uma faixa com a inscrição «Operação Acolhida Abrigo Pintolândia»), enquanto tendas e toldos foram montados ao lado. Dentro do barracão, alto, triste e feio, foram construídas estruturas de ferro banais, verticais e horizontais, que têm apenas um objectivo, mas fundamental: permitir que os indígenas pendurem as suas redes de dormir, ou hamacas. São muitas. Um mar. Ao redor delas, roupas, sapatos, bolsas. E, como sempre, muitas crianças que, apesar de tudo, brincam.

A palavra ao cacique

Na Pintolândia, há nove caciques («aidamo», na língua warao), cada um dos quais coordena um grupo de cerca de 70 a 80 indígenas. Basicamente, os caciques agem como um elo entre os hóspedes e as organizações.

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Interior do Abrigo Pintolândia, um mar de hamacas (Foto Marco Bello)

Euligio Baez, 34 anos, mulher e seis filhos, é um deles. «Estar bem», diz ele, «significa ter um lugar onde morar com a família. E um abrigo com 700 pessoas não é um bom lugar. Está muito calor dia e noite e é preciso ter um cartão para entrar e sair. Quando os nossos familiares vêm visitar-nos, têm de ficar lá fora. Precisávamos de um espaço para nós, para continuar a nossa vida, como indígenas e como waraos. Precisamos de terra. Porque tudo vem da terra. Dantes, não havia fronteiras entre o Brasil e a Venezuela. Os nossos avós disseram que os indígenas podiam ir aonde quisessem e morar lá, como se estivessem na sua terra. Agora, vimos e eles não nos deixam passar. Peça-lhes terra e eles lhe dirão que não pode tê-la.»

Adrian Valbuena, 29 anos, também é cacique. Chegou aqui, vindo de Tucupita (Venezuela), há quase dois anos. «Não gosto muito, mas está bem. Precisávamos de uma casa e de emprego, para andar de canoa, pescar e semear, fazer o que fazemos nas nossas comunidades. Os nossos filhos estão a aprender outra cultura, não estão a seguir a nossa. Eu tenho uma filha, que nasceu aqui, é brasileira. Gostava de lhe ensinar como vivemos na nossa terra.»

Todos os caciques que encontramos falam da comida, quase sempre para se lamentarem. Como Nazario Olarda, 49 anos: «Uma marmita geralmente contém arroz e carne ou linguiça. Mas esta não é a nossa comida. A nossa é o peixe, a iúca, o taro, o plátano. Aqui é arroz, arroz e mais arroz. Frango não vem, apenas carne de porco.»

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Cinco caciques, dos nove que existem no Abrigo Pintolândia (Foto Paolo Moiola)

O cacique Andres Nuñes, 21 anos, está na Pintolândia com a mulher há um ano. A filha já nasceu aqui. Na Venezuela, ficaram a mãe, a irmã e a prima. «Mas três outras irmãs», explica, «já estão em Manaus. Queremos avançar para melhorar, porque não estamos aqui a fazer nada. Gostaríamos de poder enviar alguma coisa para a família na Venezuela. Por tudo isto, acho que vou a Manaus procurar trabalho.»

Debaixo das tendas

Fora do grande barracão, foram montados tendas e toldos. Aqui, os hóspedes estão mais expostos aos caprichos do clima, mas têm mais luz e mais circulação de ar. Conhecemos algumas mulheres waraos que, à volta de uma barraca, produzem artesanato (recipientes, tabuleiros, pulseiras, etc.) com fibras de palma. O artesanato é uma das poucas actividades laborais que os migrantes waraos conseguem realizar no Brasil. Por esse e muitos outros factores (incluindo a provável conclusão futura da Operação Acolhida), o seu futuro parece ser muito incerto.

De repente, detrás das hamacas postas debaixo de uma tenda, reparamos numa rapariguinha – muito jovem e muito bonita – que já conhecemos no campo de Ka Ubanoko (edição de Abril da Além-Mar), onde ela fora visitar uma amiga. Maglennis – esse é o seu nome – ainda é menor de idade (nasceu no final de 2002), mas já é mãe de uma menina de dois anos, Angelina.

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Maglennis é menor de idade, mas já é mãe de uma menina de dois anos. Ela e a filha vivem em Pintolândia (Foto Paolo Moiola)

Naquela ocasião, além de nos mostrar o cartão indispensável para entrar na Pintolândia, ela dissera-nos que a sua filhinha precisava de uma operação cirúrgica delicada, o principal motivo que a levara a fugir da Venezuela há algum tempo sem medicamentos.

Desta vez, diz-nos que a operação foi realizada com êxito no hospital de Boa Vista. Além disso, os avós Ramon e Yolanda também vieram do campo de recepção de Pacaraima e, portanto, ela e a criança já não estão sozinhas. Hoje Maglennis está feliz, mas permanece (compreensivelmente) na incerta quando se trata de projectar o seu próprio futuro.

Mais determinada é Katerine Marin, 24 anos. Talvez por essa razão tenha sido eleita cacique, a única mulher entre oito homens. «Antes de mim, os caciques eram apenas homens. Eu disse a mim mesma: porque é que uma mulher não pode fazer isso? Somos capazes, fortes. Apesar de não ter experiência específica, as pessoas elegeram-me. No início, foi difícil organizar a comunidade. Mas as pessoas apoiaram-me e continuam a ajudar-me. Juntos, podemos mudar para o bem-estar colectivo. O meu trabalho é dar voz às preocupações de muitas pessoas; recolho informações e trago-as à coordenação, que está nas mãos da Fraternidade, para procurar uma solução para os problemas.»

Katerine está aqui com dois irmãos, de 11 e 12 anos. Conta ela: «A nossa mãe morreu no ano passado. O nosso pai está na Venezuela, mas encontrou outra mulher. Eu era responsável pelos meus dois irmãozinhos. Estou à procura de um lugar para eles irem para a escola estadual: quero que estudem. É importante dar-lhes a oportunidade de uma vida digna. A educação é uma coisa fundamental. Procurámos aqui, mas dizem que não há lugar. Poucos waraos podem ir à escola.»

Mulher, cacique, irmã, mãe. Perguntamos a Katerine com o que sonha: «Gostaria de trabalhar, porque quero prosperar. Não quero depender de alguém para sempre. Ser independente, ter algo estável, algo digno, uma casa, por exemplo. Então, se a situação melhorar, gostaria de voltar à Venezuela.»

Entre comida e liberdade

Luís Ventura, coordenador do Conselho Missionário Indígena (CIMI) na região Norte I, explica as dificuldades: «A partir de 2017, a principal medida do Estado para migrantes é a do abrigo. Sistema caracterizado por grande rigidez, a nível administrativo. Isso impede o movimento dos waraos e o seu livre acesso a relações com entidades como o CIMI e outros da sociedade civil. O facto de o acesso ao abrigo ser muito controlado é uma dificuldade que nos impediu de ter um relacionamento fluido com eles. Seria importante para nós entendermos se os seus métodos de organização são respeitados, os seus desejos e necessidades atendidos. Em 2018, os waraos vieram ao CIMI para relatarem uma série de situações que ocorriam no abrigo, e tentámos ter um relacionamento com as entidades que geriam na época a Pintolândia, mas não era possível. Começámos a intervir como quando os direitos fundamentais não são respeitados, mesmo pelo Estado, ou apelando aos mecanismos de garantia democrática que o sistema brasileiro disponibiliza.»

Os operadores do CIMI acham difícil encontrar os hóspedes da Pintolândia e precisam fazê-lo fora do abrigo, quase secretamente. «Muitos deles», lembra Luís Ventura, «consideram que esta rigidez está a bloquear a possibilidade e a capacidade de sonhar e tomar decisões. Disseram-me que não podem continuar a viver simplesmente para garantir um prato de comida.» E continua: «Infelizmente, as pessoas têm de escolher entre a garantia de comer algo que existe apenas no abrigo e a garantia de ter autonomia e liberdade para tomarem as suas próprias decisões. Essa é a grande contradição: a comida está dentro da Pintolândia, enquanto em Ka Ubanoko há autonomia, mas não há garantia de que sejam capazes de se alimentar. Dizemos», conclui Ventura, «que, se a política de migração leva a isto, fracassou completamente, porque impõe uma escolha dura, especialmente para famílias com crianças.»

Yakera?

Caminhando em Pintolândia, chegamos a um grupo de tendas onde se está a fazer a limpeza. Os colchões foram levados para o exterior e as roupas penduradas. «Choveu lá dentro», explica um indígena.

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Crianças jogam no abrigo Pintolândia (Foto Paolo Moiola)

Perto de um deles, saudamos com um «Yakera!», pensando ser gentil e fazer algo agradável. Nada disso. «Somos e’ñepás», lembra uma miúda. O erro comum de nós, brancos, é não fazer distinções: para nós, os indígenas são todos iguais. No entanto, nada poderia ser mais errado. Os E’ñepás (também conhecidos pelo nome Panare) não são waraos: outra língua, outra área de origem, outros costumes. Até os produtos artesanais são diferentes. Na Venezuela, há cerca de cinco mil, localizados sobretudo na parte ocidental do Estado de Bolívar. De facto, numa observação mais minuciosa, os seus traços somáticos são diferentes daqueles dos Waraos.

No caminho para a saída, passamos por mesas nas quais alguns indígenas – velhos e jovens – jogam damas ou dominó e depois um balcão onde algumas senhoras e’ñepás gerem uma pequena banca de artesanato, ainda que no abrigo quase não haja compradores. No espaço à frente, as crianças – na Pintolândia há muitas – divertem-se a jogar futebol.

Saímos do abrigo quando já é tarde e a escuridão é iluminada pelas lâmpadas da praça. Logo à frente da entrada, do outro lado da rua, reparamos num grupo estranho. Há duas mulheres, uma das quais é jovem e tem sete filhos. O mais novo tem alguns meses. Estão sentados ou deitados em alguns bancos de cimento, junto com várias sacolas e sacos com o símbolo da Organização Mundial para as Migrações. «Chegámos há alguns dias da Venezuela e estávamos no centro de trânsito da rodoviária», diz-nos a senhora mais velha. «Disseram-nos então que havia lugares na Pintolândia e viemos. Mas estamos à espera há algumas horas e acho que não nos vão levar. Temos de tentar voltar à rodoviária para passar a noite [pelo menos há tendas, a possibilidade de tomar banho e comer alguma coisa], mas precisamos de dinheiro para pagar dois táxis porque é muito distante. Vamos tentar novamente nos próximos dias.»

Uma pequena história de rejeição que nos leva a reflectir sobre este «humanitário» sem humanidade.   

(2.ª parte – continua)

  

Covid-19 afecta os Waraos

Manaus. A Globo informou (13 de Abril) que, na capital da Amazónia, um bebé indígena warao de dois meses contraiu o novo coronavírus. Um mau sinal, confirmado pelo facto de, em Roraima, 39 soldados encarregados de vigiar os 13 abrigos para refugiados venezuelanos (da Operação Acolhida) terem dado positivo para covid-19.

Na Venezuela em quarentena, a pandemia parece estar sob controlo. Tem, oficialmente, 311 casos e dez mortes associadas à infecção pelo novo coronavírus (24 de Abril). No entanto, outras fontes – como o Centro Gumilla (13 de Abril) – afirmam que, no chamado Arco Mineiro do Orinoco (e até no Parque Nacional de Canaima), a situação pode explodir. As actividades extractivas continuam nas piores condições. Embora as comunidades indígenas da região estejam ainda mais em risco devido à falta de água potável e à fraqueza nos seus sistemas imunitários por causa da desnutrição.

 

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