Aventura da Fé
10 outubro 2019

Camelos e agulhas

Tempo de leitura: 8 min
O camelo é um animal giro, mas muito grande. A agulha é um apetrecho útil, mas muito pequeno. Quem, no seu juízo perfeito, quereria fazer passar o camelo pelo fundo da agulha?!
Maria Mendonça
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A expressão «passar um camelo pelo fundo de uma agulha» (Mt 19, 24) serve de rampa de lançamento a Matilde para pôr os seus jovens a refletir acerca da verdadeira intenção destas palavras.

– Jesus não está louco! – elucida a catequista. – No fundo, trata-se de mais um de tantos ditos usados naquele tempo e descreve, em linguagem figurativa, uma impossibilidade total.

– Ah! Como aquele nosso, português, que diz: «Estás a querer enfiar o Rossio na Rua da Betesga»? – anima-se Filipe.

– Sim, mas com uma utilização mais geral e contextualizada à realidade daquelas pessoas – esclarece Matilde –. Quem não é de Lisboa, por exemplo, poderá não ter ideia da dimensão do Rossio e de que a Rua da Betesga é, em oposição, uma minúscula viela. Porém, toda a gente tem a imagem mental de um camelo e de uma agulha. Na Palestina, o camelo era o maior animal conhecido, tal como o fundo da agulha o mais pequeno orifício. É este contraste que Jesus pretende evidenciar: como é que o maior dos animais vai transpor a menor das passagens?

– hipérbole das hipérboles!!! – observa Inês.

Jesus é mesmo desconcertante! – repara Cristina. – Ele quer dizer sempre tão mais do que as palavras aparentam.

– É verdade – concorda a educadora. – Nos seus ensinamentos, recorre inúmeras vezes ao exagero absoluto na significação linguística. Neste caso, Jesus refere-se ao difícil que é para um rico separar-se interiormente dos seus bens para dar espaço a Deus e aos outros no seu coração (Mt 19, 26).

– Então, é mau ser-se rico? – pergunta Joel a Jesus na Bíblia_app.

– O problema não são as riquezas, é a devoção que os seus possuidores lhes rendem. O que acontece é que, em vez de as possuírem, são possuídos por elas, ficam escravos. E quando assim é, torna-se impossível haver lugar para mais alguém ou alguma outra coisa – foi a resposta.

– Na sociedade judaica, as riquezas eram vistas como um sinal da preferência de Deus – complementa Matilde. – Neste episódio, Jesus desconstrói essa crença, mostrando que ela nada tem de verdadeiro, à semelhança da possibilidade de um camelo conseguir atravessar o fundo de uma agulha. Moral da hipérbole: todos somos iguais e todos precisamos de Deus e uns dos outros!

 

Pensa nisto

Tudo o que Jesus diz não se resume a simples palavras: reveste-se de um sentido muitíssimo mais amplo.

 

EXPLICAÇÃO DA METÁFORA DO CAMELO E DA AGULHA

A Audácia recebeu mensagem das catequistas Marta Valador e Arminda Carvalho a pedir esclarecimento acerca das diferentes interpretações da expressão de Jesus «É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino do Céu» (Mt 19, 24). 

Marta Valador deixou esta mensagem no correio do Facebook da Audácia:

«Li este artigo e questionei-me. Há uns anos explicaram-me que camelo era um nome dado a uma corda grossa, no tempo de Jesus. Agora fiquei baralhada com a vossa abordagem. Será possível confirmar se se chamava «camelo» a uma cura grossa ou não? No entanto o significado da história é o mesmo.»

 

E esta é a mensagem por Email de Arminda Carvalho:
«Agradeço se possível que me ajudem a compreender a metáfora sobra o camelo passar pelo buraco de uma agulha. É que aprendi que camelo era o nome que se dava a uma corda grosso dos pescadores. Fiquei na dúvida pois como catequista  é essa explicação que dou aos catequizandos. Obrigada.»

Explicação
De facto, têm sido dadas várias interpretações. Nós preferimos a dos especialistas em línguas.

Segundo estes, a palavra kámelos (κάμηλος) significa exatamente o nosso camelo. E, na bíblia traduzida para Latim por São Jerónimo, usa-se camelus.

Ora,  nos Evangelhos de São Marcos 10, 25, São Mateus 19, 24 e de São Lucas 18, 25, a palavra usada é kámelon (κάμηλον), claramente para se referir ao animal.

Tendo em consideração que o Evangelho de São Mateus originalmente foi escrito em aramaico, é importante  saber que o grego kámelon é tradução da palavra aramaica gamai (למג), que é usada para identificar aquele mamífero do deserto, bem conhecido em Israel.

A confusão ter-se-á instalado a partir do século v, quando copistas e comentadores da Bíblia, ao analisarem o contexto em que Jesus tem este diálogo – Ele estava rodeado de pescadores –, pensaram que seria conveniente que usasse uma imagem da pesca. Socorrem-se do facto de em aramaico existirem duas palavras muito parecidas, com significados diferentes:

Gamai: camelo
Gamia: corda da rede dos pescadores

O elemento diferenciador será o Evangelista Lucas, que escreveu apenas em grego.
Todavia, os comentadores e copistas também nele encontraram uma possível troca ambígua entre as palavras gregas kamelos («camelo») e kamilos («corda grossa»).

Em relação à agulha, em Mateus e Marcos encontramos a palavra grega, ραφίς = rhaphis, que significa «agulha». E a palavra refere-se especificamente à agulha de costura. Mais claro ainda é São Lucas – que era médico – e usa o termo belónes (βελόνης), que significa agulha cirúrgica.

Mesmo que alguém use o termo «agulha» como a porta pequena para entrar no templo, onde até os camelos tinham de inclinar a cabeça – a mensagem não muda. Todavia, é de realçar que “agulha”, no texto original grego, não se refere a nenhuma espécie de porta e, tampouco, há exatidão, por parte dos estudiosos, sobre a existência de tais portas em Jerusalém.

É, ainda, interessante notar que a hipérbole se encontra em expressões fora da Bíblia:

Há um provérbio grego, anterior a Jesus Cristo, citado por Adamâncio no livro Physiognomonicon: (século iv) «Mais facilmente se esconderiam cinco elefantes sob uma axila do que alguém de costumes infames.»

Entre os judeus, no Talmude – conjunto de textos sagrados - para definir uma coisa impossível, há a expressão: «É mais fácil passar um elefante pelo fundo de uma agulha.»

E há uma passagem semelhante no livro sagrado dos muçulmanos, Alcorão 7, 40: «Aqueles que desmentirem os Nossos versículos e se ensoberbecerem, jamais lhes serão abertas as portas do céu, nem entrarão no Paraíso, até que um camelo passe pelo buraco de uma agulha.»

Nota Bene: Já agora, um pedido de desculpa. No texto na revista em papel, onde aparecem as palavras ironia, deveria constar «hipérbole».

Com os melhores cumprimentos, Fernando Felix, jornalista redator de Audácia  

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