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08 outubro 2023

A alegria é missionária: recordar, reconhecer e partir

Tempo de leitura: 9 min
Na vigília do dia 5 de Agosto, na Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco pediu aos jovens que levassem a alegria do amor de Jesus aos outros, porque a alegria sentida neste amor «louco» e incondicional de Jesus por nós não é para guardá-lo só para mim, mas impele-me a levá-lo aos outros.
P. Filipe Resende
Missionário comboniano
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(© JMJ Lisboa23)

 

Quando escrevo esta rubrica, tenho a graça de poder encontrar-me na missão de Kacheliba, no Quénia. Aqui fui enviado para viver com o povo Pokot a minha primeira experiência missionária. E aqui confesso que fui muito feliz. O voltar a este lugar traz-me à memória e renova-se no meu coração essa alegria transformadora da minha vida de jovem missionário. Faz-me voltar às origens. Faz-me recordar o entusiasmo jovem das mil e uma tarefas diárias da missão, umas mais evangelizadoras e pastorais, outras mais logísticas, mas que também acabam por fazer parte do «pacote missionário».

O Papa Francisco recorda-nos na sua mensagem que a missão não é outra coisa senão partilhar a alegria da descoberta mais fascinante das nossas vidas: que este nosso Deus de amor caminha ao nosso lado e que tem um plano de felicidade e de salvação para todos nós. Por vezes, no caminho, as dificuldades da vida fazem-nos perder isto de vista; fazem-nos perder a esperança e perceber que, como escreve o papa na mensagem para o Dia Mundial das Missões, «o Senhor é maior do que os nossos problemas, sobretudo quando os encontramos ao anunciar o Evangelho ao mundo, porque esta missão, afinal, é d’Ele e nós somos simplesmente os seus humildes colaboradores (cf. Lc 17, 10)».

À luz da caminhada vocacional da minha experiência missionária nesta missão no Quénia, gostaria de partilhar convosco três atitudes que poderiam resumir de alguma forma a mensagem do Papa Francisco para este Dia Mundial das Missões: recordar, reconhecer e partir.

Recordar

A vida do missionário gira toda à volta de um objectivo: evangelizar(-se).

Diria que este é um processo que tem de envolver primeiro o próprio missionário e depois desenvolver-se junto com toda a comunidade, daí o referir-me aqui ao «evangelizar-se». Este processo passa por recordar o chamamento recebido, passa por recordar o caminho de amor que Deus fez na minha vida pessoal, mas sempre à luz do plano que Deus tem para a minha vida. Isto faz-se sempre à luz da Palavra de Deus. Recordo que uma das primeiras actividades de evangelização que organizámos aqui em Kacheliba foi precisamente a série de workshops à volta da Bíblia. Primeiro com os cerca de 50 catequistas que tinham a seu cargo coordenar as mais de 50 comunidades no vasto território desta missão de Kacheliba. Depois também com os responsáveis das várias pequenas comunidades cristãs chamadas jumuiya na língua suaíli. Recordo-me que havia uma sede imensa destes nossos paroquianos (muitos deles ainda nem sequer baptizados!) em querer conhecer a Bíblia. A este propósito, o Papa Francisco diz que «sem o Senhor que nos introduz na Sagrada Escritura, é impossível compreendê-la em profundidade; mas é verdade também o contrário, ou seja, que, sem a Sagrada Escritura, permanecem indecifráveis os acontecimentos da missão de Jesus e da sua Igreja no mundo» (Francisco, carta apostólica Aperuit illis, 1)».

O convite final do papa é precisamente que nos deixemos acompanhar por Jesus no nosso caminho que por vezes é difícil, pois «Jesus é a Palavra viva, a única que pode fazer arder, iluminar e transformar o coração».

Reconhecer

A segunda atitude que me parece que o papa nos convida a ter na sua mensagem é reconhecer. Na experiência dos discípulos de Emaús (e na nossa própria experiência), reconhecer não é mais do que perceber e entender – dar reconhecimento – ao rosto de quem orienta e guia a nossa história de vida em todos os seus momentos. Ele acompanha-nos para podermos reconhecê-lo ao partir e partilhar da sua vida com cada um de nós. Nas palavras do papa, esta é uma realidade essencial da nossa fé: «Cristo que parte o pão, torna-Se agora o Pão partido, partilhado com os discípulos e depois consumido por eles. Tornou-Se invisível, porque agora entrou dentro do coração dos discípulos para fazê-los arder ainda mais, impelindo-os a retomar sem demora o seu caminho para comunicar a todos a experiência única do encontro com o Ressuscitado!».

Re-conhecer é voltar a recuperar esse conhecimento adquirido anteriormente e fazê-lo de novo importante e escolhê-lo como ponto de referência para toda a minha vida. Recordo os momentos de dúvidas e de questionamentos que também vivi como qualquer missionário, sobretudo quando esperamos resultados do ponto de vista da nossa realidade e à nossa maneira: «Valerá a pena tanta entrega e tanto sacrifício para nem sempre se ter os resultados que gostaríamos? Tanto tempo e dedicação, tanto investimento… será que vale a pena?» Ao contrário do que muitos podem pensar, estes são pensamentos e dúvidas comuns na vida do missionário. Não seria normal não os ter. Visto da perspectiva humana, porém, falhamos dar-lhe sentido. Só à luz do reconhecer a mão de Deus na paixão e morte de Jesus tudo se revela diferente e com sentido! Porque a aparente dificuldade e derrota é na realidade a semente de algo diferente e de uma vida nova. Uma entrega que gera vida! E isto é Eucaristia!

 

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(© Cathopic.com)

  

Partir

Há uma pergunta que muitos amigos me fazem, sobretudo quando estou em Portugal: porque é que os missionários estão sempre com uma vontade muito grande de partir para a missão onde estiveram noutros continentes? Não há necessidades aqui também?

Confesso que nem sempre me sinto à vontade com esta pergunta. Pois há coisas que só quando as vivemos de uma forma muito pessoal e intensa é que as podemos realmente perceber. E é claro que há também necessidades de evangelização no meu país de origem... Mas, a este propósito, identifico-me muito com este pensamento do Papa Francisco na sua mensagem: «A imagem de pôr os “pés ao caminho” recorda-nos mais uma vez a validade perene da missio ad gentes, a missão confiada pelo Senhor ressuscitado à Igreja: evangelizar toda a pessoa e todos os povos até aos confins da Terra. Hoje, mais do que nunca, a Humanidade, ferida por tantas injustiças, divisões e guerras, precisa da Boa Nova da paz e da salvação em Cristo. Por isso, aproveito esta ocasião para reiterar que “todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível” (Evangelii Gaudium, 14) [...] Este sair apressado para partilhar com os outros a alegria do encontro com o Senhor, mostra que «a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (Evangelii Gaudium, 1)».

Na vida missionária ad gentes (aos povos) é comum encontrar esta alegria que não tem fim, sobretudo para aqueles e aquelas que Jesus chamou pelo nome e responderam partindo, como nos recordou o Papa Francisco no seu discurso na cerimónia de abertura da JMJ23 na Colina do Encontro.

Sinto-me feliz por poder viver durante estes poucos dias aqui na missão no Quénia esta dimensão missionária ad gentes precisamente neste mês missionário. Voltar para recordar, reconhecer e partir de novo! Acolhamos então o convite e a pro-vocação do papa para este mês de Outubro por ocasião da celebração do Dia Mundial das Missões: «Portanto saiamos também nós, iluminados pelo encontro com o Ressuscitado e animados pelo seu Espírito. Saiamos com corações ardentes, olhos abertos, pés ao caminho, para fazer arder outros corações com a Palavra de Deus, abrir outros olhos para Jesus Eucaristia, e convidar todos a caminharem juntos pelo caminho da paz e da salvação que Deus, em Cristo, deu à Humanidade.» 

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