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30 março 2020

Egipto: todos no mesmo barco

Tempo de leitura: 7 min
O padre Feliz Martins, missionário comboniano, testemunha do Cairo, capital do Egipto, a situação que se vive neste país africano por causa da pandemia causada pelo coronavírus.
P. Feliz Martins
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Na cidade do Cairo, capital do Egipto, o recolher obrigatório foi decretado no passado 25 de Março, desde as seis horas da tarde até às sete de amanhã. E isto é só o princípio do que está para vir. As medidas de precaução contra a pandemia coronavírus serão ainda mais fortes num futuro muito próximo. 

Diz-se que é tempo de guerra. O inimigo está aqui, está ali, em qualquer canto, está no meio de nós, sem que ninguém o veja. É um papão que não olha a classes ou categorias de pessoas. Para ele não há ricos ou pobres. Silencioso e matreiro, vai oferecendo com ironia e sarcasmo o seu presente mortífero. Aqui e além, vêem-se fanfarrões a rir e a fingir de valentes, mas, pouco a pouco, também eles se vão rendendo, juntando-se ao comum dos mortais, deixando à vista a marca de terror nos seus rostos.

Quem tem a mínima noção do modo de vida nesta cidade do Cairo sabe que se vive até altas horas da noite sob o ritmo barulhento e buliçoso do trabalho.

A propósito, basta citar o que me aconteceu há dias. Perguntei ao oculista quando é que eu poderia ir buscar os meus óculos que estavam a ser arranjados. Resposta: «Estamos abertos até às 11 horas da noite!».

De repente, tudo mudou. De facto, ainda não são 10 horas da noite e, no entanto, reina uma quietude fora do costume. A cidade silenciou-se e parou. Não se ouvem as vozearias nem as algazarras nem os motores dos carros e as suas estridentes buzinas.
 
egipto2 cópiaAs autoridades egípcias anunciaram um toque de recolher de duas semanas, iniciado no passado 25 de Março, durante o qual o transporte público será suspenso para evitar a propagação da SARS-CoV-2 coronavírus, que causa a doença de covid-19 (Foto: Lusa)
 
Tinha acabado de rezar o terço enquanto caminhava no adro da igreja quando, antes de entrar em casa, me veio a ideia curiosa de saber o que vai lá fora. Atravessei o umbral da porta e cumprimentei os dois guardas de turno na guarita (a guarda das igrejas no Egipto foi imposta pelo governo). A rua está deserta, rigorosamente vazia. 
 
O silêncio inspirou a imaginação que me fez atravessar ruas e vielas, praças e rossios até às aforas da cidade onde, finalmente, me convidou a contemplar as majestosas pirâmides faraónicas de Giza.

Um estrondoso roncar de motor fez-me voltar a mim. Era o carro armado da patrulha do exército. Ao mesmo tempo, num triz, sofro o duro embate de um homem que chocando contra mim, me empurra violentamente para dentro, pouco faltando para que nos espraiássemos os dois no chão.

Ainda confuso, pediu-me imensa desculpa pelo seu atrevido e rude comportamento.
 
«Sei que é proibido andar na rua, mas tive de arriscar, pois o pão vai escasseando em casa», disse. «Já há uns bons anos que vos conheço e sinto-me bem convosco aqui na igreja, graças a Deus», continuou. 
 
Finalmente, fixando o olhar demorado em mim, disse, surpreendido: «Mas… o senhor mora aqui? É que eu não estou a conhecê-lo.»

Foi a minha vez de lhe dizer: «Sim, sou novo cá na nesta missão, nesta igreja. Cheguei do Sudão para tratamento médico e para lá voltarei dentro em breve, insha Allah, se Deus quiser».

Ponderando a lógica da conversa, acrescentei: «Vejo que é esta a igreja que você frequenta ao domingo». 
 
Ele, na tentativa de não me desiludir, respondeu com um sorriso de delicadeza: «Não, eu sou muçulmano.»

Recuperado do grande susto pregado pelo carro da patrulha que já tinha desaparecido na comprida rua, o desconhecido amigo estendeu a mão e deu-me o terço que tinha caído no chão e, ao mesmo tempo, disse: «Reze muito».

A seguir, mostrou-me o terço muçulmano que tirou do bolso e continuou: «Eu só sei rezar por este, mas Deus é um só. Rezemos-Lhe para que livre o Egipto e o mundo inteiro da doença do coronavírus.»

Considerando o perigo já passado, despediu-se: «Maa salama, adeus, amigo que vieste do Sudão». 
 
Mas, ao voltar-se para tomar o caminho, foi surpreendido pelos guardas da igreja que, de arma em punho, lhe barraram a passagem.

«Eu ouvi a vossa conversa; agora falo eu», disse aquele que estava à sua frente, num tom encolerizado.

Temi pela vida do meu amigo até ao momento em que ouvi, do mesmo soldado, palavras de alívio. 
 
«Isto podia ser o fim da tua vida, mas hoje estás com muita sorte: o carro patrulha do exército passou sem te ver e eu também não te acuso. Já pensaste o que seria de ti e da tua família se tivesses de pagar a colossal multa e a pena de prisão por esta tua desobediência ao estado de emergência?», o militar explicou.

E continuou: «As palavras do presidente da república à nação, ontem, forem bem claras: “Caro cidadão, não descuides as regras, ajuda-nos a salvar a tua vida para, juntos, podermos salvar a de todos os egípcios!”.»

Quando adivinhou o fim das duras palavras, o amigo desconhecido levantou a cabeça, lentamente, para ouvir do guarda a boa notícia que ainda ousava esperar: «Podes agradecer a Deus e ao padre que te acolheu e defendeu aqui na igreja, mesmo sem o saber. Mas também não vais sem o meu pedido que, neste momento, é uma ordem: as regras do jogo contra o coronavírus são para se cumprir. Tolerância zero.»

«Amin, elhamdu lillah, assim seja, graças a Deus!», foi o que os guardas ouviram de nós os dois, em humilde e profundo agradecimento.

Esta foi uma lição majestosa e vital. É que, na verdade, está em jogo a vida. A vida de todos nós. Salvamo-nos todos juntos. Em comunidade. Navegamos na mesma barca.
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