Opinião
22 abril 2019

Uma mala cheia de histórias

Tempo de leitura: 5 min
A Mala da Partilha apresenta-se como uma grande metáfora, como a arca que faz depósito e transporta dentro de si as alegrias, as dores, os sonhos, as ilusões, as conquistas e tragédias por que tantos corpos passaram e passam nos nossos dias.
Henrique Pinto
Cáritas Diocesana de Lisboa
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Não há melhor mala de viagem que o nosso corpo. É com ele que entramos neste nosso admirável mundo, nu, despido de tudo, e é também com ele que regressamos ao pó da terra, ornado, na maioria dos casos, de roupa, noutros, de pura nudez. Com o corpo desenhamos os mais variados projectos de vida, e é também com ele que os realizamos, através das mais curtas ou longas viagens. O corpo será sempre a nossa mala de viagem por excelência, a que sempre nos acompanha, e a única que nasce e morre connosco.

Uma mala, que não é esta, encontra-se há já alguns meses a percorrer estradas e localidades do nosso país. A Cáritas Portuguesa deu-lhe o nome de Mala da Partilha – Histórias de Vida, pois é seu propósito fazer nascer ou vir a conter dentro de si milhares de histórias de vida, de viagens feitas, impelidas pelo único desejo de ser feliz e de fazer outros felizes.

Esta não é o corpo de cada um, mas a sua ligação a este está precisamente nas histórias que só os corpos viveram, experimentam e são capazes de narrar. Sem que alguma vez o conseguisse ser ou substituí-lo, a Mala da Partilha apresenta-se, mesmo assim, como uma grande metáfora, como o corpo dos corpos, como a arca que faz depósito e transporta dentro de si as alegrias, as dores, os sonhos, as ilusões, as conquistas e tragédias por que tantos corpos passaram e passam nos nossos dias.

Indo bem além da instabilidade político-económico-social e ambiental em que se encontram tantos países de origem, parece-me fazer sentido referir, ao tentarmos, por vezes, perceber as razões por detrás das histórias vividas por migrantes e refugiados, o que o filósofo francês Alain Badiou sintetiza num seu recente trabalho: «Hoje, uma bem pequena e global oligarquia priva praticamente milhares de milhões de seres humanos da oportunidade de simplesmente sobreviverem, obrigando-os a deambularem pelo mundo à procura de um lugar onde trabalhar, e prover para as suas famílias…» (I Know There Are Many of You, Polity Press, 2019).

Ao falar do «outro», Badiou explica, por um lado, como a organização social dominante de uma humanidade que ele mesmo considera estar no seu princípio, no seu Neolítico, é extremamente frágil nas suas relações sociais, enquanto humanidade prática e real. Por outro, Badiou não tem dúvidas de que, apesar de a humanidade não conseguir fazer coincidir com a sua fundamental unidade o que produz, cria e organiza, a sua verdadeira missão está na produção de uma organização social que seja merecedora da sua básica unidade. Hoje, refere, a humanidade, por meio de uma nova revolução, vai ter de saber deixar para trás a revolução do Neolítico, precisamente aquela a que a par dos meios de comunicação e de subsistência, dos conflitos e do conhecimento também tem sido geradora das mais monstruosas desigualdades, hierarquias e figuras de violência e poder.

Ao recolher por diversas regiões de Portugal instantes vividos e contados por milhares de corpos, a Mala da Partilha faz de facto apelo à criação de um organizado e comum uso das coisas, com base no que a humanidade tem de semelhante: o seu recente aparecimento na Terra, a sua História, a sua biologia, a sua morte. Uma unidade que não pode ser em tempo algum esquecida e que a vida em sociedade terá de saber honrar; a que desmonta racismos, xenofobias, fascismos, populismos, ditaduras e qualquer pessoa rotulada injustamente de «ilegal» ou de «indocumentada». 

 

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