Reportagens
19 abril 2020

Portugal: Histórias com rosto

Tempo de leitura: 8 min
O ensaio fotográfico «São Pessoas» dá visibilidade a portugueses resilientes, que sobrevivem numa luta quotidiana. Olhares que denunciam a exclusão, o isolamento e a pobreza e desafiam a construir um mundo melhor.
Fernando Félix
Jornalista
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Adriano Miranda e Paulo Pimenta são fotojornalistas. Trabalham em secretárias lado a lado no jornal Público. Um dia, em conversa, deram-se conta de que os dois andavam, cada um para seu lado, a fazer trabalhos sobre pobreza. «Decidimos, então, avançar para um projecto pessoal, que nos levou a percorrer todo o País, de Trás-os-Montes ao Algarve, para contar histórias de pessoas, de todas as idades e de várias áreas, a viver situações difíceis», explicou Adriano Miranda por telefone à Além-Mar.

O projecto recebeu o nome São Pessoas, porque «fotografámos pessoas que deram a cara, livre e voluntariamente. Não fizemos fotografia fotogénica, daquela pobreza que as pessoas gostam de fotografar», como se a pobreza fosse turística. «Fotografámos olhos nos olhos, cara a cara, dignidade com dignidade», explica Adriano Miranda na página São Pessoas no Facebook.

Na fotografia turística da pobreza há o «eles que sofrem» ou os espaços que causam vergonha e o fotógrafo que captura a imagem. Em São Pessoas, o Adriano e o Paulo olharam, escutaram, emocionaram-se, houve afecto. Trata-se, de acordo com os autores, de «um ensaio fotográfico centrado no ser humano, na sua dignidade enquanto indivíduo». Visa «alertar para situações de pobreza, algumas vezes extrema e envergonhada, para a precariedade, o isolamento, a exclusão, a angústia de sobreviver todos os dias». Uma proposta que nos aproxima a estes portugueses e dá força aos seus rostos, numa composição admirável que resgata a fotografia como um poderoso olhar sobre o mundo.

Solidariedade e denúncia

Os dois fotojornalistas e mais cinco jornalistas, Ana Cristina Pereira (escreveu o prefácio), Camilo Soldado, Patrícia Carvalho, Mariana Correia Pinto e Ana Marques Maia (fez um vídeo), retrataram 43 pessoas: reformados, desempregados, sem rendimentos ou com salários precários, que tinham uma vida digna e a quem a crise tirou tudo e os deixou na fome, sem-abrigo e toxicodependentes. «É o caso, por exemplo, de uma ex-empresária têxtil, que perdeu tudo no período da crise e da troika. A vergonha acabou por impedi-la de continuar a recorrer à doação de alimentos e passou fome», contaram à agência Lusa. Ou de Jaime Filipe, 66 anos, a quem o corpo diz que ainda é novo, mas a quem, há muito, o mercado de trabalho teima em dizer-lhe o contrário. De todos se sabe o nome: Monteiro, Tiago, Francisco, Maria, Bento, Isabel, Arlinda, Laurinda, Ângela, Conceição, Neide, Higínio, Bráulio, Natália, Sara, Ismael – e mais 27. Portugueses com nome, que resistem na pobreza, na solidão e na exclusão e se esforçam para sobreviver numa luta diária.

#PP_AMANDA COSTA E TIAGO

Amanda Costa e Tiago (Foto Paulo Pimenta)

As 32 fotografias deram origem a um livro e a uma exposição itinerante, que começou no Porto, passou por Aveiro, irá a Setúbal e poderá dar a volta a Portugal.

«É um livro e uma exposição para abrir mentes, denunciar, não ficar calados», explicam os fotojornalistas. Numa sociedade centrada no consumo, no lucro e numa discriminação assente em parâmetros de economia, Paulo Pimenta e Adriano Miranda decidiram ser intermediários para que os pobres verbalizassem o seu alerta.

Cada fotografia tem tanto de história quanto de ficção. Em cada foto há um «era uma vez», um «eu estou nesta situação presente», um «quero mudar» e um «e se…». Cada fotografia partilha vivências pessoais, e, se olhadas cara a cara, dignidade a dignidade, suscitam reflexões, sobre o lugar que os seus protagonistas ocuparam, ocupam e querem ocupar, e deixam um pedido de solidariedade. Em quem as vê, as perguntas poderão ser: o que seria de mim se vivesse assim? O que me diria essa pessoa se me encontrasse com ela? O que lhe diria eu? De que modo posso ajudá-la a cumprir o seu sonho?

Diante de um tanque onde se lava a roupa, de uma cozinha, de um poço e das mãos que lhe lançam um balde, de casas frágeis iluminadas por um poste de electricidade, de uma campa e das eternas saudades, vêem-se ou adivinham-se os rostos, os olhos, as rugas, as mãos, a boca, quem habita esses lugares.

No livro e na exposição os jornalistas juntaram legendas e registos áudio. «O meu sonho é ser feliz. Não quero dizer que não o seja agora, mas não é uma felicidade completa. Nunca sei muito bem quando é que vou ter trabalho… Abrir o frigorífico e não ter nada… durante meses. Saberes que não tens dinheiro para pagar a renda», partilha uma destas pessoas, um jovem. «Eu viver, ver os meus netos evoluir na vida, esse é o maior sonho que eu tenho, e o maior prazer que me podem dar», declara um idoso.

Joaquim

Joaquim (Foto Adriano Miranda)

São retratos de um Portugal com tantas assimetrias sociais. São pessoas que «não conseguiram voltar a levantar-se», gente que «nunca conheceu outra vida que não de privação», descreve o jornalista Camilo Soldado. Então, o livro e a exposição servem «para dar força a todos esses rostos através da fotografia de alguns, para os resgatar da sombra para onde foram empurrados e para nos lembrarmos de que o caminho a percorrer ainda é longo, neste país de dez milhões com mais de dois milhões de pobres dentro», acrescenta ele.

Construir um mundo melhor

O projecto São Pessoas nasceu porque Adriano Miranda e o Paulo Pimenta são fotógrafos militantes. «Acreditamos em utopias que por vezes passam a realidades. A fotografia que produzimos tem muito de utopia. Sonhamos alto. Queremos fazer os outros sonharem. Olhamos para elas e temos um espelho à nossa frente. E as interrogações aparecem. E a magia pode acontecer: criar um exército de paz que lute por um mundo melhor.

O São Pessoas é uma semente de muitas que são espalhadas pelo chão do mundo. Eu e o Pimenta estamos a cumprir o que as nossas mães prometeram na hora de nos dar à vida: homens íntegros de luta e fibra. Sonhadores.

Por favor, façam um mundo melhor», escreveu Adriano Miranda no Facebook.

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