Sala de convívio
26 março 2019

Para que servem os livros?

Tempo de leitura: 3 min
Na Audácia de janeiro, falei no meu texto em livros para deitar fora. Logo uma associação de Coimbra, chamada Casa da Esquina (Rua Aires de Campos, n.º 6; 3000-014 Coimbra) me chamou a atenção para duas das suas muitas atividades.
Alice Vieira
Escritora
---

A existência de uma Feira do Livro Dado, e de um Mercado de Trocas para Crianças e Jovens – que, assim que tiver tempo, hei de conhecer melhor, e que espero que quem me leia vá também procurar saber melhor do que se trata.

Mas claro que aqueles livros de que eu falava… nem ao meu pior inimigo os daria!

Estes são outra coisa, evidentemente. Livros que temos em duplicado (eu tenho cinco edições dos Maias, por exemplo…), livros que já não temos tempo de reler, livros de que, pessoalmente, nem gostamos muito mas de que os outros gostam (eu, por exemplo, detesto ficção científica…), etc.

Mas é verdade que os livros servem para muita coisa.

O meu filho, em criança, não lia nada. A irmã lia tudo e mais alguma coisa… mas ele, nada. Mesmo nada. Eu desesperava, e ele mandava-me sempre com o melhor dos argumentos:

– Não tenho boas notas na escola?

Tinha. Tinha até muito boas notas e as professoras adoravam-no. E lia muitos jornais, e sabia sempre o que se passava pelo mundo. Mas ler um livro… isso é que não.

Um dia, para meu grande espanto, pediu-me As Naus do Lobo Antunes.

Pensei ter ouvido mal. Devia ser outra coisa.

– As Naus?

– Sim, mãe. Dá-me As Naus, do Lobo Antunes.

Fui à estante buscar o livro, entreguei-lho, e ele meteu-se no quarto.

Nessa tarde contei ao meu marido – que torceu o nariz, sem acreditar muito – e liguei a todas as minhas amigas a relatar o milagre.

E logo o Lobo Antunes, um autor tão difícil de ler!

Muitos dias depois, achei que ele já tinha tido tempo de ter lido o livro todo, e tornei a pô-lo na estante.

Por momentos até pensei que ele se tivesse desinteressado do livro às primeiras páginas, mas que não tinha estado para o arrumar. As arrumações, tal como os livros, nunca tinham sido o seu forte.

– Ó mãe, onde é que puseste As Naus do Lobo Antunes? – gritou assim que chegou da escola nessa tarde. Com ar meio zangado.

Fui a correr buscá-lo e passei-lho logo para as mãos. Ele voltou a enfiar-se no quarto com ele, e eu continuei feliz por aquele verdadeiro milagre.

Passaram-se dias, muitos dias, e o meu instinto de arrumação fez-me tornar a levar o livro para a estante.

Nessa tarde, ao chegar da escola, a voz dele foi mesmo de muito zangada.

– Ó mãe, mas porque é que tu tiras o livro da minha mesa de cabeceira?!…

Entreguei-lho, mas dessa vez não resisti:

– Pelos vistos estás a gostar muito do Lobo Antunes! Fico mesmo contente!

Nunca vi um ar tão espantado:

– Eu??

– Sim, tu! Já tens o livro aí há uma data de tempo!

Foi então que ele desatou a rir.

– Eu? Ler As Naus? Nunca!

– Então?

– É que numa das páginas tomei nota do telefone de uma namorada. Por isso é que estou sempre a precisar dele.

Pronto. E aqui temos mais uma utilidade dos livros. E para este caso, até mesmo aqueles que eu não daria ao meu pior inimigo serviam.

Pois é. Os livros servem para tudo.

Partilhar
---
EDIÇÃO
Abril 2024 - nº 627
Faça a assinatura da Audácia. Pode optar por recebê-la em casa e/ou ler o ePaper on-line.