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09 março 2024

A “necessidade” do amor

Tempo de leitura: 9 min
Reflexão do P. Manuel João Correia, missionário comboniano, para o IV Domingo da Quaresma, em que somos convidados a fixar o olhar em Jesus, Amor exposto e elevado na Cruz.
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A celebração do IV Domingo da Quaresma abre-se com um convite insistente à alegria, que a antífona de entrada toma do profeta Isaías: “Alegra-te [Laetare], Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais! Cheios de júbilo, exultai de alegria, vós que estais tristes, e sereis saciados nas fontes da vossa consolação” (Isaías 66, 10-11). Este é o chamado “Domingo Laetare” (como o terceiro Domingo do Advento, chamado “Gaudete”). Ao tom penitencial da Quaresma é acrescentado um toque de alegria pela aproximação da Páscoa e, em vez dos paramentos litúrgicos roxos, podem ser usados paramentos cor-de-rosa. Pequenos sinais que anunciam a alegria pascal e convidam o cristão a “correr ao encontro das festas que se aproximam, cheio de fervor e exultando de fé”, como pedimos na oração inicial (Coleta).

 A necessidade do amor 

O amor e a misericórdia são o fio condutor que liga as três leituras. À sua volta, encontramos todo um corolário de conceitos que estão no centro da mensagem cristã: acreditar/fé, graça/dom, luz/trevas, boas obras/obras más, salvação/condenação, vida/morte... Mas tudo depende de uma “NECESSIDADE” que, infelizmente, não sobressai no texto litúrgico: “É preciso/é necessário que o Filho do Homem seja elevado”!

A passagem evangélica é a conclusão do diálogo de Jesus com Nicodemos, “um dos chefes dos judeus”, que vem ter com ele de noite, talvez impressionado pelo seu gesto profético da purificação do Templo. O texto começa de forma enigmática: “Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado” (v. 21). Jesus faz referência ao episódio narrado no livro dos Números, cap. 21, quando o povo de Israel, no deserto, mordido por serpentes, clama a Deus, e então “o Senhor disse a Moisés: Faz uma serpente e coloca-a num poste; quem for mordido e olhar para ela ficará vivo”. 

Neste v. 21 aparece a forma verbal “é preciso”, “deve” (δεῖ, em grego). Encontramos o mesmo verbo nos outros três evangelhos, no primeiro anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus: “A partir de então, Jesus começou a explicar aos seus discípulos que devia (δεῖ) ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia” (Mt 16,21 e Mc 8,31; Lc 9,22). 

A paixão e a morte de Jesus são apresentadas por ele como uma “necessidade”. É claro que a sua morte não é uma “fatalidade”, mas podemos perguntar-nos: de onde vem esta necessidade ou dever? Poder-se-ia responder: de uma disposição divina ou para cumprir as Escrituras..., mas estas motivações deixam-nos insatisfeitos. O contexto do versículo sugere que a verdadeira motivação desta “necessidade” é o amor: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito”. Também S. Paulo o sublinha na segunda leitura: “Deus, que é rico em misericórdia, pela grande caridade com que nos amou, a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados, restituiu-nos à vida com Cristo” (Efésios 2,4-10). É uma síntese de todo o Evangelho!

É o amor que diz: é preciso, é necessário! Não por imposição da vontade ou do dever moral, mas por um transporte, um impulso do coração. O egoísmo, pelo contrário, diz: “Que necessidade há? Quem me obriga a fazê-lo?”. A “necessidade” que Deus experimenta de amar perdidamente, uma vez acolhida, suscita também em nós a necessidade de amar. Como as nossas vidas mudariam radicalmente se a necessidade de amar as guiasse!... 

A primeira leitura (2 Crónicas 36) atribui a destruição de Jerusalém (antes do exílio) à cólera de Deus. Diz o texto: a cólera de Deus chegou ao auge, “a tal ponto que deixou de haver remédio, perante a indignação do Senhor contra o seu povo”. Trata-se de uma interpretação resultante de uma visão antropomórfica de Deus. Na realidade, “o caminho que vai do mal cometido ao mal sofrido não passa pela ira divina” (Cardeal Tolentino de Mendonça). É preciso reconhecer que o mal é, de facto, um assunto sério que não perdoa nem poupa ninguém. As suas consequências podem arrastar-se por gerações. Infelizmente, não há escapatórias nem descontos! Como lutar contra o mal que “se agacha à nossa porta”? (Génesis 4,7). Eis duas propostas sugeridas pelo Evangelho.

 Contemplação do Crucifixo

A Palavra deste Domingo é toda ela um convite a determo-nos diante da cruz, a fixar o olhar em Jesus, Amor exposto e elevado, e a deixarmo-nos atrair por Ele: “E Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim” (João 12,32). Só “com o olhar fixo em Jesus” (Hebreus 12,2) podemos vencer o mal. São Daniel Comboni recomendava aos seus missionários que “tivessem sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando compreender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz para a salvação das almas. Se, com fé viva, contemplarem e saborearem um mistério de tal amor, serão bem-aventurados por se oferecerem para perder tudo e morrer por Ele e com Ele” (Escritos, 2720-2722). 

Olhando para Cristo “elevado” (expressão joanina que equivale a “glorificado”), podemos ser curados do “veneno” da Serpente. Infelizmente, vivemos uma vida envenenada pelo ódio e pela violência, pelo egoísmo que nos desumaniza e pela corrida ao efémero, deslumbrados por mil ilusões de uma sociedade consumista... Só a contemplação do Crucifixo é o antídoto para esses venenos! Numerosas pequenas serpentes espreitam no nosso coração e, assim que são tocadas, despertam, prontas a atacar. Só a contemplação do Crucificado pode expulsá-las e vencê-las!

 A exposição à Luz

Voltemos ao texto do Evangelho. “A luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras”. A grande tentação do homem, desde o início, é a de “esconder-se”. É um mecanismo que todos trazemos dentro de nós. O nosso risco na vida de fé é habitar, mais ou menos inconscientemente, na sombra, nem demasiado longe da luz para não sermos engolidos pelas trevas, nem demasiado perto da luz para não termos de enfrentar a “vergonha” da nossa “nudez” (Génesis 3,8-10). A Quaresma é um tempo propício para responder à voz de Deus que vem à nossa procura: “Adão/Eva, onde estás?”. É o momento oportuno para sairmos dos nossos esconderijos, das nossas “tocas” e irmos ao encontro da Luz! 

 Como exercício espiritual para esta semana, proponho:
1) Reservar tempos e espaços para contemplar o Crucifixo;
2) Encontrar uma ocasião para a celebração pessoal do Sacramento da Penitência.

 Padre Manuel João Pereira Correia, mccj

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