Igreja
02 janeiro 2020

Artesãos da paz

Tempo de leitura: 10 min
O Dia Mundial da Paz foi instituído em 1968 pelo Papa Paulo VI (1897-1978) e é celebrado no primeiro dia do novo ano. Este ano, o Papa Francisco menciona que a paz é um caminho de esperança que se constrói com a escuta, a reconciliação e a conversão ecológica.
Redacção
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O Santo Padre começa por lembrar na sua mensagem – cujo tema é «A paz como caminho de esperança: diálogo, reconciliação e conversão ecológica» – que a paz é a virtude que «nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis». 

A paz, caminho de esperança face aos obstáculos e provações

Francisco assinala os «sinais das guerras e conflitos» que a humanidade transporta consigo, num momento de «crescente capacidade destruidora», afectando especialmente os mais pobres e frágeis. «A nossa comunidade humana traz, na memória e na carne, os sinais das guerras e conflitos que têm vindo a suceder-se, com crescente capacidade destruidora, afectando especialmente os mais pobres e frágeis. Há nações inteiras que não conseguem libertar-se das cadeias de exploração e corrupção que alimentam ódios e violências. A muitos homens e mulheres, crianças e idosos, ainda hoje se nega a dignidade, a integridade física, a liberdade – incluindo a liberdade religiosa –, a solidariedade comunitária, a esperança no futuro. Inúmeras vítimas inocentes carregam sobre si o tormento da humilhação e da exclusão, do luto e da injustiça, senão mesmo os traumas resultantes da opressão sistemática contra o seu povo e os seus entes queridos».

O papa reconhece que «as terríveis provações dos conflitos civis e dos conflitos internacionais, agravadas muitas vezes por violências desalmadas, marcam prolongadamente o corpo e a alma da humanidade. Na realidade, toda a guerra se revela um fratricídio que destrói o próprio projecto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana».

O Santo Padre desafia a comunidade internacional a romper a «lógica do medo», passando da «cultura da ameaça» para a «cultura do encontro». Alerta para o perigo de aniquilação nuclear da humanidade, apelando ao fim deste armamento. «Não podemos pretender manter a estabilidade no mundo através do medo da aniquilação, num equilíbrio muito instável, pendente sobre o abismo nuclear e fechado dentro dos muros da indiferença», refere o texto. 

A paz, caminho de escuta baseado na memória, solidariedade e fraternidade

Francisco evoca a experiência vivida na sua recente viagem ao Japão, por ocasião da passagem pelos memoriais de Nagasáqui e Hiroxima, onde rezou pelas vítimas dos bombardeamentos atómicos de 1945, durante a II Guerra Mundial, para realçar a importância da memória. «Os sobreviventes aos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – denominados hibakusha – contam-se entre aqueles que, hoje, mantêm viva a chama da consciência colectiva, testemunhando às sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu», refere.

Há muitas pessoas que em todas as partes do mundo «oferecem às gerações futuras o serviço imprescindível da memória, que deve ser preservada não apenas para evitar que se voltem a cometer os mesmos erros ou se reproponham os esquemas ilusórios do passado, mas também para que a memória, fruto da experiência, constitua a raiz e sugira a vereda para as opções de paz presentes e futuras».

A memória é, portanto, «o horizonte da esperança: muitas vezes, na escuridão das guerras e dos conflitos, a lembrança mesmo de um pequeno gesto de solidariedade recebida pode inspirar opções corajosas e até heróicas, pode pôr em movimento novas energias e reacender nova esperança nos indivíduos e nas comunidades».

Francisco fala da paz como um processo, «uma construção social em contínua elaboração», «um caminho que percorremos juntos procurando sempre o bem comum e comprometendo-nos a manter a palavra dada e a respeitar o direito. Na escuta mútua, podem crescer também o conhecimento e a estima do outro, até ao ponto de reconhecer no inimigo o rosto de um irmão».

Para construir este caminho da paz «o mundo não precisa de palavras vazias, mas de testemunhas convictas, artesãos da paz abertos ao diálogo sem exclusões nem manipulações». 

A paz, caminho de reconciliação na comunhão fraterna

Francisco recorda que a Bíblia, particularmente através da palavra dos profetas, «chama as consciências e os povos à aliança de Deus com a humanidade. Trata-se de abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-se mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos. O outro nunca há-de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo. Somente escolhendo a senda do respeito é que será possível romper a espiral da vingança e empreender o caminho da esperança».

E o Santo Padre lembra que o que é verdade em relação «à paz na esfera social, é verdadeiro também no campo político e económico, pois a questão da paz permeia todas as dimensões da vida comunitária: nunca haverá paz verdadeira, se não formos capazes de construir um sistema económico mais justo». 

A paz, caminho de conversão ecológica

Francisco realça que «vendo as consequências da nossa hostilidade contra os outros, da falta de respeito pela casa comum e da exploração abusiva dos recursos naturais – considerados como instrumentos úteis apenas para o lucro de hoje, sem respeito pelas comunidades locais, pelo bem comum e pela Natureza –, precisamos de uma conversão ecológica».

O Santo Padre recorda o recente Sínodo Pan-Amazónico e propõe que se actue «em prol de uma relação pacífica entre as comunidades e a terra, entre o presente e a memória, entre as experiências e as esperanças».

«Este caminho de reconciliação inclui também escuta e contemplação do mundo que nos foi dado por Deus, para fazermos dele a nossa casa comum», continua o texto. «De facto, os recursos naturais, as numerosas formas de vida e a própria Terra foram-nos confiados para serem “cultivados e guardados” (cf. Gn 2, 15) também para as gerações futuras, com a participação responsável e diligente de cada um. Além disso, temos necessidade de uma mudança nas convicções e na perspectiva, que nos abra mais ao encontro com o outro e à recepção do dom da criação, que reflecte a beleza e a sabedoria do seu Artífice».

«De modo particular brotam daqui motivações profundas e um novo modo de habitar na casa comum, de convivermos uns e outros com as próprias diversidades, de celebrar e respeitar a vida recebida e partilhada, de nos preocuparmos com condições e modelos de sociedade que favoreçam o desabrochar e a permanência da vida no futuro, de desenvolver o bem comum de toda a família humana», refere o papa.

A mensagem papal sustenta que esta conversão deve ser entendida «de maneira integral, como uma transformação das relações que mantemos com as nossas irmãs e irmãos, com os outros seres vivos, com a criação na sua riquíssima variedade, com o Criador que é origem de toda a vida». 

A paz obtém-se tanto quanto se espera

Francisco sublinha que «o caminho da reconciliação requer paciência e confiança. Não se obtém a paz se não a esperamos».

«Trata-se, antes de mais nada, de acreditar na possibilidade da paz, de crer que o outro tem a mesma necessidade de paz que nós. Nisto, pode-nos inspirar o amor de Deus a cada um de nós, amor libertador, ilimitado, gratuito, incansável», destaca.

«O medo é, frequentemente, fonte de conflito. Por isso, é importante ir além dos nossos temores humanos, reconhecendo-nos filhos necessitados diante d’Aquele que nos ama e espera por nós, como o Pai do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-24). A cultura do encontro entre irmãos e irmãs rompe com a cultura da ameaça. Torna cada encontro uma possibilidade e um dom do amor generoso de Deus. Faz-nos de guia para ultrapassarmos os limites dos nossos horizontes estreitos, procurando sempre viver a fraternidade universal, como filhos do único Pai celeste», conclui o Santo Padre.

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Artigos
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