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31 agosto 2020

O soberanismo ambiental

Tempo de leitura: 7 min
A crise originada pela pandemia escondeu a crise ambiental e climática, que não foi resolvida e está a avançar a um ritmo mais rápido do que o esperado. Tal como acontece com a covid-19, os partidos soberanistas negam as provas e espalham no espaço público ideias cientificamente insustentáveis.
Paolo Moiola
Jornalista
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Em pouco mais de um ano – de Junho de 2019 a Agosto de 2020 – grandes incêndios têm afectado várias zonas do mundo. Da Austrália à Sibéria, passando pela Amazónia, Califórnia e Alasca. Além de causar impactos directos no ambiente e na saúde das populações, os incêndios desta magnitude acentuam os desequilíbrios climáticos de todo o planeta, dada a libertação de dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa para a atmosfera.

Existem várias causas que provocam estes eventos (incluindo os actos dolosos e culposos), mas está cientificamente comprovado que a dimensão e a agressividade dos incêndios dos últimos anos dependem das alterações climáticas: temperaturas superiores à média (particularmente na Sibéria e no Alasca), solos extremamente áridos devido a secas prolongadas, ventos mais fortes.

Os incêndios são apenas um dos eventos relacionados com a emergência climática, um fenómeno global que desapareceu da actual agenda política, mas não da realidade quotidiana. Como evidencia o derretimento do gelo do Ártico ou – para nos situarmos mais perto de nós – glaciares europeus (na Suíça, Áustria, Itália, França). Ou, mais uma vez, como mostra o aumento do número e intensidade dos chamados eventos climáticos “extremos” – furacões, tempestades, chuvas torrenciais, tempestades de granizo, inundações, secas, ondas de calor, incêndios, tempestades, deslizamentos de terra, avalanches – descritos detalhadamente pelos últimos relatórios da Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas. 

Infelizmente, entre as muitas consequências da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) está o ter colocado em segundo lugar a questão do clima e da emergência ambiental.  Um artigo recente («The focus on coronavirus is essential, but we can’t forget the climate», 13 de Maio de 2020) publicado no New Scientist sublinha: «A pandemia do coronavírus pode parecer a maior crise que a maioria de nós já enfrentou, mas cada pessoa já viveu com uma maior: as alterações climáticas.»

A publicação relaciona as duas crises: «Tem havido muito entusiasmo com a queda dos níveis de poluição atmosférica em muitos países devido aos bloqueios para combater o vírus. Já se fala em usar a pandemia como uma oportunidade [...]. Poderia este ser o início de uma revolução verde?»

De acordo com Nature, uma das revistas científicas mais conceituadas, os efeitos positivos do bloqueio (redução das emissões de gases com efeito de estufa) ao aquecimento global têm sido insignificantes por serem temporários. Para os autores do estudo («Current and future global climate impacts resulting from Covid-19», 7 de Agosto de 2020), apenas uma recuperação económica baseada em estímulos verdes poderia colocar o mundo no caminho certo ao abrigo do Acordo de Paris (contendo o aumento das temperaturas abaixo do limiar de 1,5 graus).

Essa esperança, no entanto, será posta à prova pela política, mais inclinada para escolhas que satisfaçam objectivos de curto prazo (consenso imediato e eleitoralmente satisfatório) do que objectivos clarividentes e de longo alcance. Falámos de uma causa comum das alterações climáticas. No entanto, há também um fio político que une os acontecimentos mencionados: ocorreram em países liderados por políticos soberanistas que negam (ou subestimam) as alterações climáticas e não reconhecem as actividades humanas como a principal causa da destruição ambiental.

Donald Trump nos Estados Unidos, Scott Morrison na Austrália, Jair Bolsonaro no Brasil, Vladimir Putin na Rússia (e os seus admiradores e seguidores na Europa) são soberanistas e negacionistas. Seja em relação ao clima ou ao coronavírus, a resposta é inequívoca, como resumiu Naomi Oreskes, professora de História da Ciência na Universidade de Harvard: «Primeiro negas o problema, depois negas a sua gravidade e depois dizes que é demasiado difícil ou caro resolver e/ou que a solução proposta ameaça a nossa liberdade". («The Analogy Between Covid-19 and Climate Change Is Eerily Precise», Wired, 25 de março de 2020).

Segundo o dicionário Treccani, o soberanismo é uma «posição política que defende a defesa ou a reconquista da soberania nacional por um povo ou Estado, antítese à dinâmica da globalização e ao contrário das políticas supranacionais de consulta».

Em relação à (eventual) justeza do soberanismo poder-se-ia discutir, mas não quando se trata do ambiente e do clima, porque não pode haver «soberanismo ambiental» ou «patriotismo verde». Se os comportamentos individuais (da mobilidade à alimentação) são fundamentais, o sucesso das políticas climáticas depende da cooperação internacional e da responsabilidade global, objectivos excluídos dos projectos dos partidos soberanistas, como explicam Stella Schaller e Alexander Carius num estudo que analisa a situação na Europa («Convenient Truths», Berlim 2019).

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Os incêndios na Amazónia e na Sibéria, a possível perfuração petrolífera no Alasca, o derretimento dos glaciares (próximos ou distantes) são eventos com efeitos globais que – como tal – devem preocupar qualquer pessoa, independentemente da geografia e da filiação política, cultural ou religiosa. E da idade. Embora seja verdade que há uma camada de jovens e adolescentes sensíveis a estas questões, é igualmente verdade que não temos mais tempo. Os contra-ataques – embora não decisivos – devem ser postos em prática imediatamente.

Infelizmente, a miopia e a ignorância de certas classes políticas (que são maioria em muitos países) influenciam negativamente a percepção pública, embora a realidade esteja debaixo dos olhos de quem quer ver e a possibilidade de ser informado de forma verdadeira (ou seja, não distorcida por fake news) esteja ao alcance de todos.

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