Sala de convívio
31 janeiro 2022

Mover cordilheiras

Tempo de leitura: 2 min
Não recebi nenhum apoio do meu público – as vacas, claro –, o que foi bom, porque nunca fui grande fã da sinfonia dele.
Pedro Neves
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Fechei a porta de casa ainda com a cabeça no livro de terror que acabara de ler.

Não sei dizer exatamente a temperatura que estava, só posso garantir que não era o suficiente para me fazer prestar atenção. O meu pai (agricultor de profissão) abriu a porta do escritório da vacaria para perguntar-me se já tinha posto mais lenha na lareira da sala, uma nova tradição de família que estamos a tentar desenvolver para permitir um maior convívio.

Respondi que não sem pensar duas vezes.

Ao reparar na gravidade da resposta, acrescentei de imediato que a minha mãe já tinha feito isso, o que não era mentira.

A resposta a seguir foi tão estúpida quanto a primeira (ainda estava a pensar no final do livro de terror).

O meu pai perguntou-me se eu achava que era necessário empurrar a comida das vacas da vacaria velha – é a vacaria das vacas que ainda não são leiteiras.

Respondi «Não» sem olhar.

Mas depois tive de encarar a realidade, e fui fazer o trabalho.

Não recebi nenhum apoio do meu público – as vacas, claro –, o que foi bom, porque nunca fui grande fã da sinfonia dele.

Empurrei os pequenos montes castanhos e nutritivos compostos por milho, farinha e palha, que só podiam ser servidos depois de um mês guardados apertadinhos no meio de duas grandes paredes de cimento e salvaguardadas com três camadas de plástico para poder fermentar. Esse sítio chama-se silo e aos pequenos montes castanhos e nutritivos chama-se silagem.

Terminei rapidamente de mover as cordilheiras de silagem, e corri para o meu computador, para narrar esta pequena história, sem sofrimento, provavelmente por causa dos antidepressivos.

(Crónicas verdes de um adolescente - 2ª parte)

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Abril 2024 - nº 627
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