Sala de convívio
14 fevereiro 2022

A Preferida

Tempo de leitura: 3 min
Apelidei-a carinhosamente de Preferida. Afinal, era o que ela significava para mim.
Pedro Neves
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A minha família já está no negócio da produção de leite há muito tempo, muito antes de eu nascer. À medida que a quantidade de vacas foi crescendo, aumentava a necessidade de identificá-las. Então, começámos a dar nomes às vitelas, como: Negrita, Jivera, Maravilha, Gaivota, Nogueira, Requelina, Sereia, entre muitos outros nomes invulgares.

Com a chegada da era digital à agricultura, começámos a necessitar de usar números para identificar no computador as vacas, como 087, 051, 023, etc. As vacas também receberam um belo colar com os seus números, como se fossem os seus cartões de cidadãos, os quais elas passeiam com muito orgulho por onde andam. 

A minha vaca era única

Nos anos que vivi, só conheci uma vaca com nome na minha casa. Era uma vaca muito carinhosa, com o corpo tingido a preto e a cabeça branca com um círculo preto em volta do olho, por quem desenvolvi uma preferência na minha infância. Apelidei-a carinhosamente de Preferida. Afinal, era o que ela significava para mim. Enquanto o meu pai dava comida ao gado todo, eu, ao mesmo tempo, dava só à Preferida, o que fazia com que a minha querida vaquinha ficasse com montes de erva e silagem desproporcionalmente superiores em relação ao resto do gado. A consequência dessa desproporcionalidade foi que se tornou uma das vacas mais robustas da minha casa quando chegou à idade adulta (dois anos humanos), mas o peso acima da média não é um fator de grande importância na saúde das vacas. 

A vaca cabeleireira

Quando atingi a altura suficiente para trabalhar no meio das vacas, que era ter a altura de uma vaca, enfiei as mãos nas luvas, o meu corpo no fato de macaco cinzento e lancei-me para o meio delas. Umas recebiam-me com olhares de lado. Outras rececionavam-me a aspirar a minha roupa com os seus grandes narizes. Mas houve uma alta, bem maior que eu, com os meus 165 cm, que achou que o meu cabelo estava sujo e decidiu lavar. Tenho de admitir que ainda prefiro uma esponja e um champô a uma língua áspera e baba, mas deixei-me ficar um pouco a experimentar a sensação e até peguei no meu telemóvel e fiz um vídeo – talvez um dia queira mostrar aos meus netos.

Nos dias seguintes tomei em consideração a dica da vaca e lavei com mais atenção o meu cabelo. Acho que a vaca ficou satisfeita, pois só voltou a interromper o meu trabalho para pedir que lhe coçasse o pescoço. Esta vaca cabeleireira é a atual preferida de todos – a minha querida Preferida há já alguns anos que não passeia pela vacaria, não me lembro bem do porquê. 

(Crónicas verdes de um adolescente)

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Abril 2024 - nº 627
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